Um homem sério

"Um homem sério" - "A serious man", EUA/Reino Unido/França, 2009

Direção: Joel e Ethan Cohen,

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Sempre que se trata de um filme dos irmãos Cohen, uma coisa é certa: excelência e polêmica. Porque eles não fazem filmes apenas. Usam do cinema com maestria para repensar conosco as questões filosóficas mais importantes que afligem desde sempre a humanidade.
Em “Um homem sério” (indicado para o Oscar de melhor filme e melhor roteiro original) os Cohen utilizam-se pela primeira vez, explícitamente, da cultura na qual nasceram e foram criados.
O judaísmo é uma referência natural quando se trata de questões em aberto porque essa é a sua essência. Os textos da Torah são estudados e interpretados em cada geração e os comentários mais inspirados servem como lições de vida.
Isso posto vamos ao filme, que tem como epígrafe essa frase:
“Receba com simplicidade tudo o que lhe acontece.” (Rashi)
Pois é exatamente o oposto o que o anti-heroi do filme, o professor de física e matemática Larry Gopnick (o excelente Michael Stuhlbarg), faz quando tudo começa a dar errado para ele: seu casamento desmorona, seus filhos o preocupam, um aluno tenta suborná-lo, suas finanças vão mal e ele não tem certeza se será ou não formalizado em seu emprego na Universidade, entre outras preocupações.
Ao contrário da história bíblica, esse Jó pós-moderno não louva o Senhor quando lhe acontecem as desgraças que o filme apresenta em um crescendo assustador. Nem mantém, como Jó, a fé na Providência Divina. Ele se tortura perguntando: o que foi que eu fiz para ser castigado dessa maneira?
Nessa tragicomédia que é “Um homem sério”, os Cohen tratam dessa culpa atormentadora que persegue o homem contemporâneo. Quem tem divã de psicanalista que o diga…
E não apenas isso, porque ao colocar a questão em termos de culpabilidade, Larry afasta da cena o principal, que é o uso que não faz do seu livre arbítrio na hora de escolher os caminhos a trilhar nessa vida. Ele sente-se empurrado pelos acontecimentos sem ter a possibilidade de mudar o rumo das coisas.
E é nesse momento que Larry busca a sabedoria.Vai a três rabinos, desesperado, querendo uma resposta pronta e um manual de sobrevivência.
Ora, dizem os irmãos Cohen, isso não existe.
Larry, que fala aos seus alunos sobre o princípio da incerteza, deduzido do paradoxo de Schrodinger, que demonstra que um gato pode simultâneamente estar vivo ou morto e que tudo depende de um observador para fazer tal afirmação, não aprendeu nada do que ensina…
Insiste em procurar fora uma resposta que só vai surgir quando ele defrontar-se com os fatos e perguntar a si mesmo.
Por isso é maravilhosa a fábula com que os irmãos Cohen dão início a seu filme. Vamos a ela.
Cenário: Cracóvia, inverno, dois séculos atrás, uma casa simples, marido e mulher conversam em iídiche.
O homem conta para sua mulher que encontrou o rabino de Zohar e que conversou com ele. E reclama:
-Estamos arruinados…
A mulher responde:
-Não pode ser porque esse rabino morreu de tifo há três anos atrás. Você conversou com um “dibbuk” (espírito maligno).
Batem à porta. Os dois se assustam.
O marido diz que convidou o rabino para tomar sopa com eles e vai abrir a porta.
Entra o rabino numa revoada de neve.
A mulher olha bem para o rabino e convida-o para a sopa.
– Obrigado, não quero.
A mulher diz:
– Eu sabia.
– Porque não quero a sopa? Estou gordo.
– Não.Você não quer a sopa porque “dibbuks” não comem.
E assim dizendo a mulher enfia um utensílio de cozinha pontudo no peito do rabino.
-“Dibbuk” eu? Que esposa você tem !
E o rabino solta gargalhadas.
– Ela acha que o senhor morreu e é um “dibbuk”…
O marido tenta explicar mas está mais assustado do que nunca.
– Você não se feriu.
E a mulher examina bem o peito do rabino com o pontudo objeto enfiado até o talo.
– Ao contrário. Estou me sentindo fraco. Talvez seja melhor ir embora.
O rabino vai até a porta e some na nevasca.
– Estamos arruinados, mulher. Amanhã vão descobrir o corpo…
– Besteira. Já vai tarde!
E fecha a porta.
Lembram-se do paradoxo de Schrodinger? Aqui o gato está morto porque um observador informado constatou o fato. E fim de papo.
A tela fica escura e um ponto vai se sobressaindo, trazendo a história para uma escola de hebraico, no meio-oeste americano em 1967. No fundo, o som do Jefferson Airplane canta:
“Don’t you need somebody to love?”
Vá ver o filme e pense.

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Amor sem escalas

"Amor sem escalas" - "Up in the air", Estados Unidos, 2009

Direção: Jason Reitman

O título original fala mais sobre o filme do que essa tradução boba que fizeram no Brasil.
Porque o bonitão e sexy George Clooney é Ryan Bingham, alguém que vive no ar, em aviões cruzando os Estados Unidos. Quando em terra, ocupa algo parecido com um quarto de hotel espartano e não ficamos sabendo nada sobre sua vida amorosa, nem seu passado.
É um sujeito competente no que escolheu fazer na vida: demitir de seu trabalho pessoas que não conhece. Ele é o empregado ideal, de uma empresa terceirizada nessa função que as próprias empresas não conseguem cumprir, tantos são os que tem que ser demitidos. Evitam assim enfrentar pessoalmente lágrimas e derramamento de sangue.
Pensem nos Estados Unidos no ano passado, quando levas e levas de bons trabalhadores americanos eram postos na rua por causa da temida crise mundial que começou lá.
George Clooney (que está muito convincente no papel de Ryan Bingham) vive sempre “Up in the air”, algo como “nas nuvens”, para desempenhar seu antipático ofício. E adora isso porque chega a dizer frases como essas abaixo durante o filme:
“Conhecer-me é voar comigo.”
“Tudo que você odeia quando você voa, para mim são doces lembretes de que eu estou em casa.”
“No ano passado, passei 43 dias infelizes em casa, os outros maravilhosos 322 nos aviões…”
Além de usar uma retórica vazia mas eficiente, já que ao demitido não resta outra coisa senão lamentar-se, o frio Ryan ainda estuda a ficha da pessoa e ironicamente a incentiva a realizar sonhos, agora que já não há outra alternativa:
“Vi que você fez o curso de culinária francesa. Por que não se dedica a isso agora? Para você será um renascimento. Realize seus sonhos e conquiste o orgulho de seus filhos.”
Além de demitir pessoas, Ryan dá palestras motivacionais em vários lugares por onde passa. Seu tema é “esvazie a mochila”:
“O que vocês levam na mochila às costas? Quero que sintam o peso dela nos seus ombros. Está ficando pesada: coisas, relacionamentos, seu carro, sua casa, seu apartamento… Agora tentem andar. É difícil, né? Eu digo a vocês: mover-se é viver. Vocês deveriam deixar tudo isso se queimar. É muito estimulante não ter nada. Relacionamentos afetivos, então, são as coisas mais pesadas na vida. Vocês não precisam carregar todo esse peso. Seres humanos não são cisnes que são monógamos. Somos tubarões. Não podemos parar.”
Mas é claro que a vida dá voltas. Ryan, tão bem defendido por suas convicções (ou pelo menos é isso que ele pensa), vai se dar mal.
Quando, inevitavelmente, o apelo amoroso comparecer, ele não vai saber lidar com isso.
Encontra Alex (Vera Farmiga) em um bar de hotel e não reconhece os sinais de que suas defesas estão desabando.
Sua companheira de trabalho, a jovem estagiária Natalie Keener (Anna Kendrick), que descobre um outro método de demitir pessoas (conversas por internet), fica chocada com o que ouve em seus papos com Ryan. Ela, que sofre por um namoro que se rompeu (via internet), faz o melhor diagnóstico sobre o personagem de George Clooney:
“Você construiu para si mesmo um casulo de auto-exílio.”
A moral desse filme me fez lembrar uma conhecida fábula de Esopo: “A raposa e as uvas”.
Diz essa fábula que uma faminta raposa, passando por uma videira, reparou em um cacho de suculentas uvas. Mas, por mais que pulasse e se esforçasse, não conseguiu alcançá-las. Exausta e desanimada, olhou novamente as tão desejadas uvas e disse: “Estão verdes, vão me fazer passar mal…”
Acho que parece ser esta a defesa principal de Ryan para lidar com seu medo de envolver-se com a vida ou seja, de sofrer e errar como todo mundo. Enfrentar frustrações e aprender com elas não é coisa fácil. Mas é a única maneira de viver.

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