Corações Perdidos

“Corações Perdidos” – “Welcome to the Rileys”, Reino Unido / Estados Unidos, 2010

Direção: Jake Scott

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A imagem de um carro em chamas nos pega de surpresa. No silêncio, ouve-se o crepitar do fogo. Acidente? Morte?

Mas não há tempo para nos fixarmos nessa perplexidade porque um rosto na penumbra captura nossa atenção.

Acende um cigarro.

Compreendemos que ele é Doug Riley (James Gandolfini) e está jogando pôquer com amigos.

Que ele é tristonho e bonachão, é fácil de ver. Que é terno e carente, também.

A simpática e apagada garçonete negra de meia-idade, do restaurante onde sempre joga com os amigos, é sua amante.

Os vemos na cama, calmos, sem clima de arrebatamento, conversando. Ele a convida para ir com ele a uma convenção em New Orleans:

“- Mas nem mala eu tenho…” diz ela.

“- Eu compro pra você. Pense nisso”, responde ele.

“- Vou pensar. Mas agora é tarde. Volte para a sua casa.”

Ele vai e quando o carro entra na garagem, vemos uma tabuleta que diz: ”Welcome to the Rileys”. É o titulo original do filme. Sóbrio e bem mais expressivo sobre o contraste de emoções que vamos sentir durante o filme do que a tradução infeliz, “Corações Perdidos”, que remete a um folhetim barato.

A casa de subúrbio, espaçosa e fria, esconde um segredo que a nova cabelereira, que vem pentear a dona da casa a domicílio, descobre sem querer, abrindo a porta errada: um quarto de menina.

“- Quantos anos tem sua filha?”

E é assim que somos apresentados a Lois Riley (Melissa Leo), mulher de Doug Riley, que jamais sai de casa. Ali não há calor nem acolhimento. Daí a ironia do titulo original do filme.

O luto pela filha de 16 anos (e aí nos lembramos com horror do carro em chamas), aprisiona a mãe em sua casa-tumba.

Paralisada, ela vive trancada, condenada à morte em vida por culpas abissais.

Sabemos como o luto é uma etapa difícil na vida de qualquer mãe. Já escrevi sobre isso quando comentei os filmes “Ricky” (2009) de François Ozon e “Reencontrando a Felicidade” (2010) de John Cameron Mitchell com Nicole Kidman.

A mãe enlutada visita regiões infernais em busca do porque dessa perda irreparável. Contra a natureza, já que os mais velhos deveriam morrer primeiro em nossas mentes racionais, quando acontece, fere profundamente.

Lois Riley lembra a personagem de Nicole Kidman, porque ela também foge de tudo e todos. Defende-se da dor, fazendo de sua casa um refúgio seguro. Mas a morte ronda.

Por isso entendemos Doug e seu jeito desanimado. Ele também sofre com a perda da filha e com a reação desesperada da mulher mas não desistiu de viver.

E quando a garçonete morre de um enfarte súbito, Doug vai descobrir algo no cemitério que o libertará.

Vai visitar o túmulo da filha e fica horrorizado com o que vê. No túmulo dos Riley, seu nome e o de sua mulher já estão gravados, com as respectivas datas de nascimento, esperando só as da morte para dar boas-vindas a todos eles. Um macabro “Bem-vindos aos Riley”, como diz o titulo original do filme.

“- A lápide que você comprou para nós é espantosa! Nós estamos vivos. Não precisamos de túmulos! Eu estou vivo. Não acredito que você fez isso, Lois…” diz ele, perturbado, à mulher.

Nessa noite, ao invés de fumar na garagem, ele solta o pranto sufocado e soluça livremente.

E é aí que entra Allison (Kristen Stewart), garota de 16 anos, “pole dancer”, que se prostitui em um bar decadente de New Orleans. Exatamente o lugar por onde perambula um triste Doug, saído da convenção.

O encontro entre eles vai mudar a vida dos Riley.

“Corações Perdidos”é um filme feito com ternura. É o segundo longa de Jake Scott, filho do diretor inglês Ridley Scott que é responsável por dois filmes “cult”do cinema do século XX : “Blade Runner”(1982) e “Thema e Louise” ( 1991).

Aqui ele é o produtor do filme do filho.

O elenco, escolhido com apuro, dá um show.

Melissa Leo, que depois desse filme ganhou o Oscar de atriz coadjuvante por “O Vencedor” em 2010, faz uma Lois de carne e sangue. James Gandolfini, famoso pela série “Familia Soprano”, emociona e convence como o doce Doug.

E Kristen Stewart, a Bella de “Crepúsculo”, enfrenta um papel muito diferente com um talento que promete.

Filmado durante o outono de 2008 em New Orleans, que havia sido duramente castigada pelo furacão Katrina, “Corações Perdidos” traz à tela uma boa história sobre a possibilidade de reconstrução da vida depois de uma tragédia.

Bela metáfora.

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A Missão do Gerente de Recursos Humanos

“Le Voyage du Directeur des Resources”, Israel / Alemanha/ França, 2010

Direção: Eran Riklis

Quem viu “Lemon Tree” (2008) e se emocionou com o drama da viúva palestina que protegia o pomar de limoeiros dos seguranças de seu novo vizinho, o Ministro da Defesa do Estado de Israel, que queriam destrui-lo em nome da proteção ao chefe, vai ter curiosidade sobre o novo filme do cineasta israelense Eran Riklis, que levou cinco prêmios da Academia Israelense de Cinema, “A Missão do Gerente de Recursos Humanos”.

No titulo original, a “missão” da tradução brasileira é, na verdade, “a viagem”. Mas, vamos por partes.

Nascido em Israel, Eran Riklis, 56 anos, é um diretor de cinema sensível a temas que colocam em dúvida certezas íntimas. Estudou cinema na Inglaterra e faz filmes desde 1984. Apareceu com sucesso nos Festivais de Veneza e Berlim em 1991 com “Cup Final” e “Zohar” (1993) foi muito prestigiado pelo público em Israel. No Brasil passou também o seu “Noiva Siria” (2004).

O novo fime começa em 2002 em Jerusalém, a “Capital da Eternidade”, “A Cidade de David”, Yerushalaim. Uma bela vista com o Muro das Lamentações ao fundo, aparece no filme.

A história, adaptada do romance “A Mulher de Jerusalém” de Abraham Yehoshua, centra-se no gerente de recursos humanos de uma grande panificadora industrial da cidade.

O problema dele (Mark Ivanir, ótimo ator ucraniano) é que uma ex-funcionária, imigrante romena, Yulia Petracke (que só aparece em um filminho no celular de seu filho), morre em um atentado à bomba com outras 16 pessoas. Seu corpo está há dias no necrotério da cidade.

Um jornalista (Guri Alfi) descobre o acontecido e passa a fazer reportagens acusatórias sobre a panificadora e seu gerente. Clama por justiça para a funcionária, que não tinha sido demitida regularmente.

Para defender a empresa de pães, cabe ao mal-humorado gerente, cuja vida pessoal não caminhava bem, fazer uma viagem ao interior da Romenia, levando o corpo para o funeral.

Contada dessa maneira linear, a história perde o que tem de melhor: detalhes, olhares, cuidados, descobertas.

Ou seja, aquilo que se passa nos bastidores dos personagens é que é o mais importante e conduz a narrativa.

Assistimos à lenta transformação do que seria um trabalho meramente burocrático para o gerente, em uma viagem na qual ele vai ser tocado em seu território mais intimo.

É esse o material com que melhor trabalha o diretor Eran Riklis: a alma humana e sua possibilidade de surpreender, de superar fronteiras geográficas, culturais e religiosas.

Ele é um humanista e trata sempre disso em seus filmes.

Aliás, Eran Riklis é mestre em dizer, com cenas mudas, tudo o que passamos a saber sobre seus personagens. Em “Lemon Tree” a troca de olhares empáticos entre a palestina e a mulher do Ministro da Defesa de Israel dizia mais do que mil discursos sobre os conflitos entre esses povos vizinhos. Aqui, em “A Missão do Gerente de Recursos Humanos”, prestem atenção na neve que tomba sobre o gerente na cidadezinha em que Yulia nasceu, quase como que falando por ela, pedindo a ele um “milagre”.

É um filme que faz rir com situações tragi-cômicas enquanto convida a pensar sobre os limites auto-impostos à nossa possibilidade de sermos melhores do que somos.

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