As Maravilhas

“As Maravilhas”- “Le Meraviglie”, Itália, Suiça, Alemanha, 2014

Direção: Alice Rohrwacher

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Vamos assistir a um filme de uma diretora talentosa que, em seu segundo longa, fala do feminino usando de metáforas da natureza e ao mesmo tempo se utilizando de um registro naturalista, próprio do cinema tradicional italiano. Ao mesmo tempo há uma preocupação com mudanças perigosas, enganos, rupturas, desaparecimento de uma cultura, desastres.

Uma atmosfera de sonho angustiado cerca as primeiras cenas do filme, quando faróis de carros, como olhos luminosos no escuro, brilham na tela. Cães farejam na noite. Há homens armados. O que está acontecendo?

A câmara mostra casas num lusco-fusco e, numa delas entra em um quarto, outro. Uma menina dorme só de calcinha. Mas há mais gente por ali.

“- Aonde você vai?” pergunta quem supomos ser a mãe (Alba Rohrwacher, irmã da diretora).

“- Preciso fazer xixi”, responde a menina.

O homem que supomos ser o pai (Sam Louwyck) está em outra cama.

“- Os caçadores atiraram?”

Há uma ameaça que pesa sobre aquela família.

De chofre, sem qualquer explicação, somos jogados dentro dessa casa.

Depois percebemos que são pai, mãe e quatro filhas. A mais velha é Gelsomina (mais prática que a de Fellini em “Noites de Cabíria”), Marinella é a segunda, a mais alegre. Catherina e Luna são as menores. Recolhem o mel de colméias de maneira artesanal.

Há uma constante preocupação com o balde para onde escorre o mel. Quando está cheio, as meninas o esvaziam num reservatório maior, de onde vai para os potes que as pequenas rotulam.

Gelsomina é a lider do trabalho. Lida com as abelhas ajudada pelo pai. Mas a menina nunca é picada. É ela que tira os ferrões das costas do pai.

O pai usa o italiano mas palavras em alemão se intrometem em sua boca. Com a mãe fala em francês. Por que? Não sabemos.

E todos os dias são iguais até que chega a dona do “País das Maravilhas”.

A fada-deusa, vestida de sedas e ouro falso, interpretada pela bela Monica Bellucci, comanda um programa de TV que propõe um concurso entre as propriedades da região. O cobiçado prêmio em dinheiro irá para o melhor show. As meninas logo se interessam pela novidade, apesar da proibição do pai.

Na necrópole etrusca, no meio do lago, as velhas do lugar vão cantar antigas canções, mocinhas vão dançar com fantasias improvisadas, e Gelsomina vai trazer seu rosto, escondido entre suas mãos, onde abelhas passeiam com intimidade.

As paredes daquele cemitério milenar vão reviver com a luz de fogueiras e já não sabemos em que época estamos. E o amor acontece.

O filme de Alice Rohrwacher, 32 anos, ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes 2014. Único representante da Itália na mostra competitiva, tem elementos da própria biografia da diretora e roteirista, criada na Toscana, numa família de apicultores.

Mas “As Maravilhas” é um filme misterioso. Como o povo etrusco que habitou naquele lugar, como as abelhas que produzem mel há séculos e começam a desaparecer, como aquela família que aparece sem apresentações e desaparece numa bela cena final, onde uma cama única os acolhe, ao relento, como um barco num mar imenso, à mercê das marés do tempo.

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O Diário da Esperança

“O Diário da Esperança”- “A Nagy Fuzet”, Hungria, Alemanha, Áustria, França, 2013

Direção: János Szász

A Segunda Grande Guerra foi palco de muitos dramas. Como em toda guerra, a humanidade do inimigo desapareceu ou quase, e viveu-se um dia a dia de busca de sobrevivência e medo.

A história dos gêmeos de doze anos que são deixados no campo pela mãe, com a avó, que ela não vê há muito tempo, em si mesma já é dramática. Por que aquela filha se afastou assim dos pais? E para onde segue?

“- Por anos você não me escreveu e agora quer que eu a ajude?” pergunta a mãe da mãe.

“- Só quero que você proteja meus filhos.”

“Será que pelo menos eles tem um pai? Não fui convidada para o casamento… Vou por os dois para trabalhar. Comida não é de graça.”

E aquela velha baixinha e mal vestida, que mora numa casa pequena e suja e é intratável, vai infernizar a vida dos gêmeos.

O pai deles dera aos filhos um caderno, antes de voltar para a guerra. E a mãe pedira que eles fossem fortes e continuassem os estudos.

Aquele diário será preenchido com relatos da vida dos meninos. Terá marcas e restos de penas, sangue e desenhos, retratando os horrores a que presenciam. Ouvimos em “off” a voz de um deles que vai narrando os acontecimentos registrados no diário.

O diretor János Szász adaptou o romance de Agota Kristof (1935-2011), com fotografia de Christian Berger, que deu uma beleza flamenga aos retratos da natureza, sob o sol ou a neve, sem que com isso se esconda a podridão que ronda e que vai transformar aqueles meninos em sobreviventes sem sentimentos ternos.

Para ficar mais resistentes, os gêmeos resolvem treinar o corpo para não sentir dor. Todos batiam neles sem precisar de nenhuma razão. Então, eles vão endurecer, esquecer que tem mãe, pai ou que passam fome e sede.

“- Precisamos esquecer das palavras doces de mamãe porque aqui ninguém nos trata assim e porque recordá-las dói muito.”

O oficial alemão, comandante do campo de concentração além da fronteira e que mora numa outra casa da avó, pergunta:

“- Por que vocês batem um no outro?”

“- Para nos acostumarmos com a dor.”

“- Vocês gostam da dor?”

“Não. Só queremos vencer a dor, o frio, a fome.”

Colocando uma couraça invisível, os dois só tem um ao outro, para poder sobreviver naquele inferno. Mas até isso será tirado deles, por eles mesmos.

Resta alguma piedade nos gêmeos porque não são maus. São apenas duas crianças fazendo o que podem para enfrentar homens em guerra.

Haverá esperanças de dias melhores?

Nós, adultos, precisamos pensar no que fazemos com nossas crianças e o que ensinamos a elas com os nossos exemplos. “O Diário da Esperança” fornece um bom material para esse exame de consciência necessário.

 

 

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