Uma Mulher Fantástica
“Uma Mulher Fantástica”- “Uma Mujer Fantástica”, Chile, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, 2017
Direção: Sebástian Lelio
Oferecimento
O que as Cataratas do Iguaçu tem a ver com aquele homem na sauna, beirando os 60 anos, cabelos grisalhos e óculos? Ele é charmoso (Francisco Reyes).
O vemos num bar, onde canta uma moça atraente, de vestido preto de bolinhas brancas, cinto e colar vermelhos. Parece que ela canta para ele. Ela é bem mais jovem.
Depois vemos o casal num restaurante chinês. É o aniversário dela e os garçons chineses cantam frente a um bolo com velas. Ele passa um envelope para ela abrir.
“- Vale duas passagens para as Cataratas. O que é isso?”
E ela se levanta e vem beijá-lo. Ele retribui o carinho e explica que não sabe onde perdeu as passagens, por isso o vale. Partem em 10 dias. É o presente de aniversário dela.
A comemoração continua na boate onde dançam agarradinhos. E depois a transa apaixonada em casa.
Mas ele passa mal no meio da noite e ela corre com ele para um hospital. Onde tudo acaba. Um aneurisma.
Assim termina o romance de Orlando Onetto e Marina Vidal, que chora escondida no banheiro.
E há algo estranho no jeito do médico que deu a notícia e pede o documento dela, olhando-a de alto a baixo.
Ela liga para o irmão de Orlando e dá a notícia. Alguém tem que vir ao hospital. E ela sai correndo pelas ruas desertas de Santiago, até que um carro de polícia a leva de volta ao hospital. Do que ela tem medo?
Outro policial pede novamente seus documentos no hospital e diz:
“- Enquanto não mudar, seu nome é esse ”, diz severo.
“- Esta situação está em trânsito…”, responde ela sem jeito.
Chega o irmão do morto que a olha com curiosidade:
“- Você é Marina? Sou Gabo, irmão do Orlando. Cuido de tudo. ”
O policial devolve o documento dela e pede o telefone. Há um desconforto geral.
Sebástian Lelio, 43 anos, chileno, diretor do premiado “Gloria”, faz o espectador se intrigar, se surpreender e, por fim, sentir na própria pele o que Marina Vidal, uma mulher transgênero, tem que passar por querer viver o luto e participar dos rituais fúnebres de seu companheiro.
Abrindo um parênteses, lembro que uma pessoa transgênero é alguém que nasceu com um gênero (masculino ou feminino) com o qual não se identifica e então passa a se vestir como prefere ser e busca hormônios e cirurgia. É uma questão que se refere à identidade da pessoa.
Preconceitos contra Marina Vidal? De todos os lados.
A família de Orlando não entende por que ele se separou da mulher (Aline Kuppeheim) para ficar com Marina. A ex dirige-se a ela como se fosse uma prostituta e uma “anormal”:
“- Quando te vejo não sei o que você é. Aliás você é uma Quimera”, referindo-se ao ser mitológico feito de partes de vários animais.
O roteiro do próprio diretor e Gonzalo Maza, ganhou o Urso de Prata em Berlim. Faz uso de cenas da vida real para explicar como se sente Marina, ora duplicada nos espelhos e vidros de vitrines, ora usando de metáforas, como quando ela luta contra um vento tão forte que ela não consegue sair do mesmo lugar, ora vendo seu amado Orlando, parecendo que ele a espera para o adeus final, o que lhe é negado pela família dele.
O fotógrafo Benjamin Echazarreta faz muitos “closes” de Marina, que algumas vezes olha direto para a câmara, para expressar diretamente para a plateia toda a determinação que a move, apesar das humilhações pelas quais passa.
Daniela Vega é uma atriz excepcional e passa uma verdade, que ela mesma deve ter vivido, sendo ela também transgênero, à sua personagem: feminina, gostando de ser mulher, apesar de todos os pesares.
Ao final, de veludo negro, com a bela voz da atriz, Marina Vidal canta no palco de um teatro “Sposa son disprezzata -Sou esposa e desprezada”, ária atribuída a Vivaldi mas que na verdade foi composta por outro músico barroco, Giacomelli. Outro equívoco aproveitado com ironia. E, finalmente, o rosto de Marina mostra toda sua beleza e verdade.
“Uma Mulher Fantástica” é um filme delicado e sofisticado que trata com empatia um assunto contemporâneo, sem vulgaridade.