Azul é a Cor Mais Quente

“Azul é a Cor Mais Quente”- “La Vie d’Adèle - Chapitres 1 et 2”, França/Belgica/Espanha, 2013

Direção: Abdellatif Kechiche

As cenas eróticas, ousadas e belas, são certamente o que vai ser mais comentado por todo mundo que viu o filme. Os jovens corpos nús, sob uma luz intensa, estão nítidos na tela. Vemos com clareza as duas moças empenhadas numa busca empolgada pelo gozo. A câmera percorre cada centimetro de pele e foca rostos suados e concentrados. Nunca se viu nada igual.

Mas, se o voyeurismo do público é premiado, não penso que seja esse o objetivo final do diretor. Ao contrário, saciando a curiosidade sobre o sexo do casal de mulheres, podemos passar para outros assuntos, questões de identidade e existenciais, que o filme propõe.

Vamos assistir à vida de Adèle dos 16 aos 20 e poucos anos, a passagem dos anos amadurecendo e destruindo ilusões, durante três horas.

Desde o início, a câmera procura o rosto de Adèle (Adèle Exarchopoulos, magnífica e comovente), uma adolescente que não é igual às outras do liceu onde estuda. Seu olhar é, ao mesmo tempo, tímido e agressivo. Ela procura algo que não sabe onde está.

Na sala de aula, o professor propõe aos alunos que pensem no tema da predestinação, a propósito do romance de Mme de Lafayette, “La Princesse des Clèves”. No momento em que a princesa encontra o duque de Nemours, acontece o “coup de foudre”, como se um raio atingisse os dois e criasse uma ligação instantânea entre eles.

Adèle, na rua, toda bela para um encontro com um menino do colégio dela, vislumbra um cabelo pintado de azul. Quando se cruzam, vê a outra (Léa Sedoux), olhar intensamente para ela, voltando-se para melhor contemplá-la, abraçada com outra garota.

O encontro predestinado aconteceu. Adèle reconhece esse momento, o “coup de foudre”, o raio amoroso que a atingiu.

A partir desse instante, a garota de cabelo azul preenche os sonhos e as fantasias eróticas de Adèle. Bem que ela tenta namorar o menino “heavy metal” que só tinha gostado de um livro em sua vida, “Ligações Perigosas” e, assim mesmo, só por causa do jogo duplo.

Adèle adora ler, gosta de livros, sua pouca cultura está acima da média dos adolescentes que a cercam. Mas ela é uma pedra preciosa sem polimento. Come de boca aberta, lambe os dedos, se bem que sempre de um jeito charmoso, infantil.

Os beijos tímidos que troca com uma morena na escada do colégio, ela confunde logo com compromisso. A outra diz claramente que foi só uma brincadeira, para a decepção de Adèle.

Nela, brilha intensamente a infância, a ingenuidade e principalmente a carência, a necessidade de se apegar.

Quando encontra Emma, estudante de Belas Artes, mais velha do que ela, a do cabelo azul, a atração física é intensa, a cama é um lugar de paixão para as duas mas Adèle se consagra à outra. Ama perdidamente, enquanto Emma segue sua profissão de pintora com afinco e ambição.

E é patético perceber o quanto é exatamente essa fixação obsessiva, esse entregar-se toda e com intensidade rara, que vai ser sua perdição.

Num tempo de sexo banal, Adèle precisa de Emma para viver. E a câmera mostra bem isso. O talento de Adèle Exarchopoulos, 20 anos, faz o coração da gente doer por ela.

O diretor e roteirista Abdellatif Kechiche, tunisiano, 53 anos, de “O Segredo do Grão”2007, “Vênus Negra”2010, ganhou a Palma de Ouro de 2013 em Cannes, juntamente com suas duas atrizes.

Steven Spielberg, presidente do júri, disse a Adèle Exarchopoulos que o filme era uma das mais belas histórias de amor que já havia visto.

Imagens inspiradas, câmera ágil, quase sempre em “close”, retrato psicológico interessante dos personagens, a discussão de temas atualíssimos, sem pieguices mas com afetividade e delicadeza, fazem de “Azul é a Cor Mais Quente”, um filme marcante e indispensável.

Este post tem 0 Comentários

  1. Arlindo Caria disse:

    nossa que critica linda, uma clareza uma profundidade , quem lêr essa beleza , vai ficar tocado em assistir o filme .

    • Eleonora Rosset disse:

      Arlindo querido,
      Quando um filme me emociona, minha resenha vem com muito coração.Acho que foi isso que vc sentiu. Coração e cabeça unidos mas com o sentimento mais à flor da pele.
      Nem todo filme faz isso comigo mas esse fez!
      Bjs

  2. Eleonora amo cinema e adoro ler suas cronicas a respeito. Fiquei dias pensando nesta linda historia de amor. Como nos entregamos na nossa juventude e como é tão bonita e dificil esta entrega. Amei o filme!

  3. So para dizer que amo Morte em Veneza, de Visconti ,,uma beleza.
    Amo o Thomas Mann. Amo a Montanha Magica. Ja quis ir para Berlim só para conhecer o Win Wanders. Amei Paris Texas , Asas do Desejo e ultimamente o documentario dele sobre a Pina Bauch. Adoro quando a sensibilidade se alia a beleza e a poesia.

  4. Bismarck disse:

    Gostei muito da crítica que supera o caráter erótico explícito durante as cenas de sexo entre as atrizes. Falando-se por mim, adorei a comovente interpretação de Adèle quando a menina está passando por maus bocados, retratando suas tristezas, angústias e desesperos de modo ímpar e convincente! Gostei de ver a personagem ir conhecendo sua própria sexualidade em sua turbulenta trajetória amorosa, enquanto vai amadurecendo com as adversidades. De resto, achava muito sexy e charmoso o modo como a protagonista fazia o seu “penteado” (bem destacado no filme, aliás). Alguém sabe me dizer se o filme irá ser vendido em DVD ou Blue-Ray no Brasil (ou via importadora, desde que haja legenda em português)?

  5. maria das mercês Soares andrade disse:

    Incrivel, deslumbrante, estonteante, sagaz, vibrante, político, sensual…. O filme é tudo isso e mais alguma coisa. Depois de BLADE RUNNER, TRANSILVANIA e A VIDA DOS OUTROS não tinha apreciado algo tão comovente.

    São impagáveis a performancee, a cumplicidade e a parceria das atrizes com a “exigente” direção !!!!!!Realmente nem só do pão vive o homem. Presentão de NATAL para as pessoas que não tem vergonha de serem humanas.

    Lamentável ainda persistirem os órgãos de censura que insistem em controlar os desejos e anseios das pessoas. Sorte de quem tem acesso a INTERNET. Aproveitem em esse momento de lucidez humana e esqueça essas moralidades desumanas, fictícias e excludentes.

  6. Sola disse:

    Realmente é uma filme muito sexy, cheio de coisas novas, as duas se entregaram totalmente nos papeis. Mas Adele que é tão nova e já tão talentosa, as aulas com as crianças fazem parecer que ela em muitas vezes às improvisa e com muita delicadeza e autêntica.
    Fato: este filme desvenda o porque o relacionamento de mulheres pode ser muito intenso,pela cumplicidade , admiração e muita coisa em comum. A condição de Adele era de Musa e depois ….não se sabe.

  7. aristeu disse:

    Só uma palavra define esse filme: MARAVILHOSO!!! Eleonora, seu comentário é perfeitíssimo, mostrando mais uma vez a sensibilidade das mulheres… Parabéns! Adorei! Abraço!

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