A Câmera de Claire

“A Câmera de Claire”- “Claire’s Camera”, Coreia do Sul, 2016

Direção: Hong Song-soo

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Você já viu algum filme desse diretor coreano? Ele é famoso em festivais. Tem um jeito muito peculiar de fazer filmes, bastante intrigantes, porque não segue uma forma linear de contar a história. O espectador vai formando-a em sua cabeça, conforme o filme se desenrola e os personagens vão dando detalhes.

Aqui entre nós já vimos “Certo Agora, Errado Antes” de 2015, com resenha nesse blog, que ganhou o Leopardo de Ouro em Locarno. A mesma história é contada duas vezes com pequenas variações que levam a finais diferentes.

Outro já visto é “À Noite na Praia Sozinha” de 2017, também resenhado por mim, que tem Kim Min-hee, 35 anos, como estrela e faz a artista por quem o diretor do filme se apaixona. Kim Min-hee ganhou o Urso de Prata em Berlim por esse papel. Ela é também a garota pela qual o diretor do filme anterior, que é casado, se enamora. Esse dado é verdadeiro e fez escândalo em seu país, levando Hong Song-soo ao divórcio.

Em “A Câmera de Claire”, a musa do diretor faz o papel principal, ao lado de Isabelle Huppert que já filmou com ele “A Visitante Francesa – Another Country” de 2012.

O filme se passa durante o Festival de Cannes mas não há massas de turistas nem na praia nem na Croisette.

Numa mesa de um café vazio, depois de uma conversa enrolada, a chefe Nam Yanghye (Chang Mihee) despede a jovem Manhee (Min- Hee, a musa do diretor) da empresa onde ambas trabalham juntas há 5 anos, sem maiores explicações. Diz que sente que a garota não é honesta. Bem no estilo dos filmes de Sang-soo, só mais tarde vamos entender o porquê dessa demissão.

E mais estranhamente ainda, a jovem despedida pede para tirar uma selfie com a ex chefe, que posa constrangida.

Em outro café de Cannes, uma turista (Isabelle Huppert), que veio acompanhar uma amiga cineasta, fica conhecendo um diretor de cinema sul-coreano So Wansoo (Jun Jinyoung), que veio para o Festival. Ela confere no Google e é verdade. Lá está o nome e a foto do diretor. Ela percebe que ele bebe muito.

Na conversa, Claire conta que é professora mas também escreve poesia e tira fotos.

“- Então você também é artista”, diz o diretor.

Saindo dali, vão a uma biblioteca onde Claire lê para o diretor, uma poesia que está num livro intitulado “C’est Tout”, sobre um jovem que morreu “antes de ser marcado pela morte”.

“- É um poema estranho mas eu gosto”, diz Claire sem maiores explicações. Depois vamos entender o porquê quando conhecermos Claire melhor.

Numa cena seguinte num restaurante, Claire encontra o diretor e a chefe que despediu a mocinha, lá na primeira parte do filme.

Quando Claire tira uma foto dele, o diretor pergunta:

“- Por que é tão importante uma foto? ”

“- Porque depois que eu tiro uma foto, você não é mais a mesma pessoa. ” E acrescenta: “A única maneira de mudar as coisas é observando devagar. ”

E o que chama a atenção do diretor quando vê outras fotos de Claire é uma que mostra a mocinha despedida no terraço de um hotel:

“- Você a conhece? pergunta Claire. “Tirei essa foto assim que cheguei. Ela estava tão linda! ”

As fotos de Claire fazem acontecer coisas porque ela é o elo entre os três personagens coreanos.

E compreendemos porque a chefe despediu a mocinha. Ciúmes. Ironicamente, quando Claire se vai, é a vez do diretor ser honesto e acabar com o longo relacionamento que manteve com a chefe da mocinha.

Claire vai encontrar Manhee na praia e vão juntas comer comida coreana. Ao longo da conversa das duas, vamos conhecer melhor a vida de Claire.

Parece que o diretor Hong Song-soo quer sugerir que somos mais parecidos do que pensamos. Tanto faz nascer em Paris ou Seul. Estamos sempre às voltas com nossos sentimentos, nossas dores de amor, nossa vontade de amar e ser amado, de ser reconhecidos, visíveis para o outro.

E, no final do filme, há o corte abrupto da vida que continua.

Para nós também, que levantamos da cadeira do cinema meio assombrados mas sem dúvida pensando nas questões do filme de Hong Song-soo.

A Escolha de Sofia

“A Escolha de Sofia “- “Sophie’s Choice”, Estados Unidos, 1982

Direção: Alan J. Pakula

Existem filmes inesquecíveis. Transmitem tanta verdade sobre o ser humano em situações limite que se tornam refrãos. Isso acontece quando alguém se vira para você e diz:

“- Foi uma “escolha de Sofia”. ”

E você entende o que a pessoa disse porque viu o filme e não se esqueceu. Trata-se de uma escolha impossível mas que precisa ser feita.

E é bom rever o filme, como eu fiz, porque a cada vez você percebe algo mais. Há muita coisa boa além da história, escrita no livro de John Irving e adaptada para o cinema pelo próprio diretor Alan J. Pakula.

Stingo (Peter MacNicol), o personagem mais jovem, chega a Nova York em 1947, um ano depois da Segunda Guerra. E aluga um quarto no castelinho rosa no Brooklyn, onde vai conhecer Sophia, a polonesa de pele branca e rosto belo que fala com um forte sotaque e procura as palavras, num inglês recém aprendido. Chegara há seis meses da Europa.

O namorado dela, Nathan (Kevin Kline) é judeu, inteligente e vive cercado de livros, dos quais recita trechos de cor mas seu temperamento é instável. Vai da alegria esfuziante ao rancor mais negro, sem que ninguém tenha feito nada demais. E suas brigas com Sophia são sempre trágicas. Ela implorando e ele a maltratando. Uma dupla sadomasoquista que nos envolve com intensidade.

Stingo apaixona-se pelo casal. E ele, que quer ser escritor, tem farto material para observar a natureza humana ali na sua frente, espreitando o casal, fascinado com tudo aquilo que acontece no quarto acima do dele.

Quando a verdade da vida é terrível, contam-se mentiras, verdades imaginárias, alternativas ao horror, que é então banido da mente numa negação tremenda. Quando isso acontece, parece que a pessoa é outra e não aquela que viveu o terrível. Mas a verdade grita lá dentro da alma. Até o dia em que não dá mais para fugir. Há então, uma rendição à realidade. Machuca muito. Mas não se pode evitar.

E é isso que vamos ver numa cena em que Sophia, a incrivelmente talentosa Meryl Streep, com o rosto lavado em lágrimas, debaixo de uma luz azulada, confessa a Stingo o que aconteceu com ela no campo de concentração na Polônia.

Ela ganhou seu primeiro Oscar de melhor atriz com esse papel e para sempre deixou impregnada na nossa retina e no nosso coração aquela cena espantosa.  De forma mansa e arrasadora, a verdade é contada e a ouvimos quase sem respirar.

Há “flashbacks” curtos que não atrapalham o ritmo do que está sendo contado. Ora Sophia, ora Stingo são os narradores.

A fotografia em cores vivas e que varia conforme o tom da cena, em vermelhos e azuis, de Nestor Almendros, cerca os personagens com uma aura surreal.

“A Escolha de Sophia” tem temas universais e prende o espectador, que não pode evitar a emoção que invade a todos. É cinema de primeiríssima.

Você não pode deixar de ver.