Lulu, Nua e Crua

“Lulu, Nua e Crua”- “Lulu Femme Nue”, França, 2013

Direção: Sólveig Anspach

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Atrapalhada, ela ajeita-se no espelho do banheiro, sem na realidade mudar em nada sua aparência comum. Um batonzinho, cabelos num coque, franja e um olhar baixo.

“ – A senhora está no banheiro dos homens”, informa um deles, achando graça na cara que ela faz. Murmura desculpas mas, desajeitada, leva tempo para recolher suas coisas. Outro homem entra e ela se adianta:

“- Já sei. Me enganei…”diz tímida.

A cena mostra que ela está nervosa porque tem uma entrevista para um emprego de secretária. E vê-se que, beirando os 40 anos e sem nenhuma experiência, ela não está segura de si mesma.

Frente ao dono da empresa, que dá pouca atenção a ela,  repete frases entrecortadas, já que o telefone toca sem parar e o homem atende a todos, negligente quanto à presença dela.

“- Mas ajudar seu marido na oficina mecânica não lhe basta?”

A pobre dá-se conta de que não vai haver emprego nenhum por ali. Mas o homem acrescenta:

“-Quer um conselho? Da próxima vez, cuide mais de sua aparência. Isso é importante numa entrevista de emprego.”

E lá se vai ela, cabisbaixa, dar a notícia ao marido, que já deixou três mensagens zangadas no celular dela.

Lucie (Karin Viard, excelente) que todo mundo chama de Lulu, parece ser uma mulher que cuida dos filhos e do marido mas não consegue sentir-se valorizada.

Quando ela perde o último trem para Angers, onde mora, a 50 km dali, hospeda-se num hotelzinho barato. E essas parecem ser as primeiras horas de sua vida, como ela mesma.

Tira a aliança para passar um creme nas mãos e inebria-se com o perfume. Não está acostumada a luxo nenhum. E quando seu olhar cruza com sua figura no espelho dá a impressão de que ela se vê pela primeira vez. Enrolada na toalha, adormece saboreando o espaço só dela, algo que não sabe o que é, mas que lhe dá prazer.

Pela janela, no dia seguinte, vê o mar e vai andar pelos rochedos onde o mar se quebra.

Ela ainda não sabe, mas encontros inesperados vão fazer Lulu mudar de atitude frente à vida. Ela vai descobrir qualidades em si mesma que estavam adormecidas.

Nua? Sim, ela vai mostrar seu corpo que enfrentou o frio da água do mar, sem pudores bobos. Um homem (Buli Lanners) vai apreciá-la e cuidar dela.

Mais além, uma senhora de 90 anos (Claude Gensac) gosta de sua presença e uma mocinha (Nina Meurisse) vai precisar de um empurrão para realizar seus sonhos.

O mais importante para Lulu é desvencilhar-se dos papéis de mulher e mãe mal amada, desnudando-se do que já não lhe servia e adotando uma atitude mais segura de si mesma. Finalmente, ela sabe o que não quer.

A diretora islandesa, 54 anos, Sólveig Anspach, ganhou o César de melhor roteiro adaptado de 2015 por “Lulu, Nua e Crua”, baseado numa história em quadrinhos de Étienne Davodeau. O filme teve 500.000 espectadores na França.

A diretora tinha um câncer contra o qual lutava há tempos e, infelizmente, faleceu em agosto de 2015, em sua casa no sudeste da França. Montava seu último filme, “L’effet Aquatique” que estreia em 2016.

“Lulu, Nua e Crua” é um filme doce, feminino que acompanha o desabrochar da personagem principal com um olhar simpático e sensível.

 

Peter Pan

“Peter Pan” – “Pan”, Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, 2015

Direção: Joe Wright

Peter Pan é um personagem que sempre me encantou. Corajoso, galante, brincalhão. Chapeuzinho verde com uma pena, túnica meio esfarrapada, cinto e espada de madeira. Eu vestia a fantasia e fingia voar, como ele.

Para a menina que eu era, imaginativa e ávida por aventuras, o mundo da minha casa se ampliava quando eu brincava que era Peter Pan.

E é esse o ângulo que Joe Wright escolheu para fazer seu filme, uma homenagem à imaginação e ao sonho, que nos faz escapar de um mundo de realidade muito estreito.

O escritor que criou Peter Pan em 1904, o escocês J.M. Barrie (1860-1937), ajudou muitas crianças que viviam vidas sem graça, ou mesmo infelizes, a viajar com o menino voador para a Terra do Nunca, onde existiam fadas luminosas, belas sereias, crocodilos gigantes, florestas encantadas, piratas e índios.

Mas faltava uma coisa nessa ilha encantada: uma mãe.

O inglês Joe Wright, 43 anos, quer contar de onde veio Peter Pan, como nasceu o menino que não sabia que podia voar. Como todo órfão, o que mais fazia falta em sua vida, no lar de crianças abandonadas, era o carinho de sua mãe.

Nas primeiras cenas, vemos quando ela (Amanda Seyfried), abandona o bebê na porta do orfanato e coloca em seu pescoço a correntinha com a flauta e uma carta.

Doze anos depois, durante a Segunda Guerra, bombas caem sobre Londres e Peter sofre nas garras de uma freira que parece bruxa. Para uma criança sem mãe, todas as mulheres são inferiores e más, porque com sua presença denunciam a ausência daquela única que poderia amá-la de verdade.

E Peter sonha. E em sonhos vai para a Terra do Nunca, lugar da Mãe. Ele tem a certeza de que vai encontrá-la.

Na carta que ela deixou está escrito: “Não duvide de si mesmo. Você é extraordinário. Mais do que imagina.”

Escolhendo um registro psicológico, Joe Wright faz das angústias de Peter e de sua fuga da realidade através do sonho e da imaginação, o material para construir a Terra do Nunca, para onde se vai num navio que voa, porque ela está no meio das nuvens do céu. E lá Peter Pan vai descobrir quem é seu amigo e seu inimigo (Gancho e Barba Negra, substitutos paternos), conhecer sua verdadeira história e descobrir quão extraordinário ele realmente é. Uma mensagem que toda criança precisa ouvir.

Joe Wright valeu-se do 3D de forma criativa, os cenários com as cores do arco-íris inventam um lugar de fantasia, maravilhas e perigos, ameaças e descobertas.

O elenco é ótimo, destacando-se o australiano Levi Miller que interpreta Peter Pan com valentia e ingenuidade, Hugh Jackman que faz o Barba Negra, vilão com toque de alta costura e o Gancho de Garret Hedlund, simpático e malandro. Sem esquecer da princesa Tiger Lily ou Tigrinha, valente e encantadora (Rooney Mara).

Joe Wright, de “Desejo e Reparação”2007 e do luxuoso “Anna Karenina”2012, mostra novamente que o cinema, quando bem feito, mexe com nossas memórias mais antigas, funcionando como uma “máquina do tempo”que desperta a criança eterna lá dentro de nós.

Por tudo isso, “Peter Pan” vai agradar pais e filhos.