O Lobo Atrás da Porta

“O Lobo Atrás da Porta” Brasil, 2013

Direção: Fernando Coimbra

Oferecimento Arezzo

Existem pessoas que são como bombas-relógio. Perigosas. O problema é que é difícil identificá-las. E, se o fazemos, quase sempre é tarde demais. Principalmente quando estamos envolvidos com elas.

A história começa com um flerte num trem de subúrbio. Aquela moça bonita, de cabelo curto e ruivo, parece não estar gostando do homem que olha para ela de soslaio. Lê um livro, muito séria.

Ela desce do trem e, na plataforma da estação, lá está ele, olhando de novo.

“- Você está me seguindo?” interpela ela.

Ele fica sem jeito.

“- Eu? Não…”

Mas ela muda de atitude.

“- Que pena…”

Sestrosa, ouve o convite para passear de carro. E vão.

Paixão na praia, no carro, na cama. Ela é fogosa nos beijos longos e ardente nos braços dele.

Até descobrir que ele é casado.

“- Não gosto de mentira… Mas posso continuar a ser sua amante. Por enquanto. Promete nunca me deixar?”

Ela passa a viver pensando em como possuir esse homem, que se nega a abandonar mulher e filha para ficar com ela.

E, quando ele é canalha com ela, vai ser olho por olho.

Rosa, carinha de anjo, por dentro é só ciúme e raiva. Humilhação e orgulho ferido levam à obssessão, deflagrando loucura.

Há insanidade na perseguição.

Numa cena de tempestade, trovões explodem e raios iluminam o rosto dela. O que vemos é um olhar determinado e escuro.

“O Lobo Atrás da Porta” de Fernando Coimbra é um filme como poucos. A trama de uma tragédia vai se urdindo passo a passo. Personagens da vida real, interpretados com garra e sensibilidade por um elenco magistral, vão apresentando cada um sua verdade. A mãe da menina desaparecida (Fabiula Nascimento) não entende nada. O pai (Milhem Cortez), o amante de Rosa, se arrepende tarde demais. E Leandra Leal, veste sua personagem com um rigor que assusta.

As imagens são de uma câmara que procura o primeiro plano para flagar nos rostos o momento decisivo mas, ao mesmo tempo, também enquadram cenários detalhados, dando tempo e lugar àquelas vidas.

A fotografia de Lula Carvalho, solar ou noturna, é sempre msteriosa, servindo para mostrar como acontece aquilo que se teme adivinhar.

A trilha sonora de Ricardo Cutz tem poucos sons. Ora a corda de um baixo soa junto a um zumbido rouco, outras vezes o silêncio é cortado pelo barulho do trem que passa muito perto. E o canto suicida das cigarras chega a atordoar. “Último Desejo”, de Noel Rosa, toca num rádio no momento certo.

Em seu filme de estreia, o diretor e roteirista Fernando Coimbra, acerta em tudo, construindo suspense com maestria e fazendo com que os mais velhos da plateia relembrem  uma história que fez escândalo há 54 anos atrás.

“O Lobo Atrás da Porta” é cinema de altíssimo nível.

Que estranho chamar-se Federico – Scola conta Fellini

“Que Estranho Chamar-se Federico – Scola Conta Fellini”- “Che Strano Chiamarsi Federico” Itália, 2013

Direção: Ettore Scola

Estranhamente o filme começa com um ator recitando versos em espanhol:

“Entre los juncos y la baja tarde,

qué raro que me llame Federico”

Ettore Scola, 83 anos, mostra desse modo de onde veio a inspiração para dar título a seu filme, homenagem ao grande homem, de quem foi amigo por 50 anos.

Usando o verso do poeta espanhol, Federico Garcia Lorca, morto pelos fascistas espanhóis na guerra de 1936, Scola lembra que a época em que a vida artística de Fellini começou, foi também a do fascismo na Itália, sob Mussolini. E que Fellini pertence também, como Lorca, à galeria dos rebeldes inspirados.

E, na tela, um desenho do próprio Ettore Scola vai se tornando uma imagem do Maestro (1920-1993), sentado em sua cadeira de diretor, com o famoso chapéu, frente ao mar, onde o sol se põe em vermelhos e laranjas cinematográficos.

Já noite, desfilam perante o cineasta, seus personagens: uma bela negra dança à luz de um holofote, o espetáculo continua com o mágico de cartola que faz seus números, depois é a vez do palhaço, seguido pelo engolidor de fogo e bolhas de sabão que encantam um menino.

Esse prólogo coloca-nos imediatamente dentro de um filme de Fellini, porque nossa memória afetiva reconhece seus personagens do circo, de sonhos e da infância.

E um trem adentra o Studio 5 de Cinecittá (onde foram rodados quase todos os filmes dele), trazendo o jovem Fellini de Rimini para Roma, com 19 anos, para trabalhar no jornal Marc’Aurelio, em 1939. Traz seus desenhos de cartunista.

Assim também tudo começa para Ettore Scola que, aos 16 anos, já depois da guerra, também vem trabalhar no mesmo jornal.

Os dois ficam amigos. Mas, antes da fama, passaram pelo teatro de revista e escreveram roteiros de cinema para outros diretores.

Nas noites de insônia, anos mais tarde, passearam juntos na Mercedes branca de Fellini, através de Roma. Ali, nesse mini-palco, o maestro entrevistava pessoas como o pintor de calçadas e a prostituta “Gioconda”, inspirações para personagens de seus filmes.

E Fellini filosofa com a história da prostituta:

“- Acho que a mulher é o planeta desconhecido, com quem o homem quer encontrar a parte que ele ignora de si mesmo, a parte obscura.”

Aquele que se intitulou em suas memórias “Fellini: Sou um Grande Mentiroso”de 2003, é desculpado por Giulietta Masina (1921-1994), sua mulher:

“- Para ele não é mentira, é tudo fantasia.”

E esse mix de realidade e sonho é o clima do filme de Scola, que foi o único que convenceu Fellini a fazer o papel dele mesmo em “Nós que nos Amávamos Tanto”1974. Ele aparece fazendo a cena da Fontana di Trevi de “La Dolce Vita”, com Anita Ekberg e Marcello Mastroianni. No fim da filmagem da cena, um fã dá os parabéns a Fellini, confundindo-o com Rossellini, o que provoca gargalhadas dos dois amigos.

Interpretados os dois quando jovens por dois netos de Scola e com roteiro de sua filha Sylvia, o filme é um tributo à Fellini e sobretudo à amizade deles.

Cenas com atores se misturam a cenas reais de arquivos, gravações da voz de Fellini, recriações de cenas famosas, entrevistas de Alberto Sordi e Vittorio Gassman para o papel de Casanova que acabou com Donald Shutterland, Orson Wells, Marcello Mastroianni e sua mãe reclamando de Scola que faz o filho dela ficar feio e elogiando Fellini que o faz belo, mil pedaços da vida e filmes de Fellini, ao som de Nino Rota, coladas com carinho e talento por Ettore Scola.

Um filme para ser visto e revisto pelos que amam a obra do grande mestre do cinema e para ser descoberto pelas novas gerações.