Um Toque de Pecado

“Um Toque de Pecado”- “A Touch of Sin”, China 2013

Direção: Jia Zhang – ke

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O olhar duro e realista de um diretor chinês, que mostra através de quatro histórias, baseadas em fatos reais, como anda a China hoje, assusta e por isso, parece confortável pensar que tudo é muito distante de nós.

Essa violência, esse sangue que jorra em “Um Toque de Pecado”, esses homens e mulheres em um estado de tensão tal que explodem em agressividade contra outros seres humanos, animais ou eles mesmos, são o retrato da civilização do século XXI, infelizmente.

Jia Zhang-ke, em pouco mais de duas horas, foca sua câmera em personagens comuns. Vai do mais velho ao mais moço, fechando o circulo e trazendo o espectador, que pensava que o filme retratava talvez outra época mais primitiva, ao desconforto de perceber que tudo se passa nos dias de hoje.

“Um Toque de Pecado” fala de um desenraizamento, da perda de valores, desmantelamento dos laços familiares, sobrevivência difícil, corrupção, desumanidade no trato com os animais, grandes disparidades sócio-econômicas, valor exagerado do dinheiro na vida das pessoas, perda de referências e brutalidade.

O filme conta quatro histórias, enlaçando-as de maneira inteligente, por detalhes. O roteiro, que foi premiado em Cannes, traz por exemplo, o titulo do filme no mesmo papel de parede que vamos visitar na terceira história. O primeiro ato de violência apresenta o protagonista da segunda história que está de motocicleta na mesma estrada que o protagonista da primeira. Há encontros em trens e ônibus e um dos personagens da terceira história vai voltar à aldeia da primeira história, fechando o circulo.

Dahai, da primeira história, é um trabalhador de uma mina que se revolta contra a corrupção local. Tenta discutir, argumentar, reclamar pelos direitos do povo da aldeia, mas em vão. O rifle enrolado em um tigre de pano vai encher a tela de sangue.

A segunda, leva a roubo e assassinato um trabalhador deslocado de sua região natal, que perde o contato afetivo com a mulher, o filho e a família.

O terceiro caso traz a bela Zhao Tao, a mulher do diretor, que faz uma moça que trabalha como recepcionista de uma sauna e não consegue que seu amante largue a mulher. Por acaso, ele deixa um canivete com ela, que não vai servir para descascar maçãs.

E a comovente quarta história, envolve um jovem que tenta ajudar a família mas não consegue e é pressionado até seu limite, tragicamente.

Frente ao que restou de um passado milenar, um pagode e muralhas cercando uma cidade desaparecida, a cantora de ópera chinesa pergunta para uma plateia silenciosa:

“Você entendeu o seu pecado?”

A universalidade de “Um Toque de Pecado” fala da grandeza desse mestre do cinema, de 43 anos, que, falando da China, fala também de toda a humanidade.

Azul é a Cor Mais Quente

“Azul é a Cor Mais Quente”- “La Vie d’Adèle - Chapitres 1 et 2”, França/Belgica/Espanha, 2013

Direção: Abdellatif Kechiche

As cenas eróticas, ousadas e belas, são certamente o que vai ser mais comentado por todo mundo que viu o filme. Os jovens corpos nús, sob uma luz intensa, estão nítidos na tela. Vemos com clareza as duas moças empenhadas numa busca empolgada pelo gozo. A câmera percorre cada centimetro de pele e foca rostos suados e concentrados. Nunca se viu nada igual.

Mas, se o voyeurismo do público é premiado, não penso que seja esse o objetivo final do diretor. Ao contrário, saciando a curiosidade sobre o sexo do casal de mulheres, podemos passar para outros assuntos, questões de identidade e existenciais, que o filme propõe.

Vamos assistir à vida de Adèle dos 16 aos 20 e poucos anos, a passagem dos anos amadurecendo e destruindo ilusões, durante três horas.

Desde o início, a câmera procura o rosto de Adèle (Adèle Exarchopoulos, magnífica e comovente), uma adolescente que não é igual às outras do liceu onde estuda. Seu olhar é, ao mesmo tempo, tímido e agressivo. Ela procura algo que não sabe onde está.

Na sala de aula, o professor propõe aos alunos que pensem no tema da predestinação, a propósito do romance de Mme de Lafayette, “La Princesse des Clèves”. No momento em que a princesa encontra o duque de Nemours, acontece o “coup de foudre”, como se um raio atingisse os dois e criasse uma ligação instantânea entre eles.

Adèle, na rua, toda bela para um encontro com um menino do colégio dela, vislumbra um cabelo pintado de azul. Quando se cruzam, vê a outra (Léa Sedoux), olhar intensamente para ela, voltando-se para melhor contemplá-la, abraçada com outra garota.

O encontro predestinado aconteceu. Adèle reconhece esse momento, o “coup de foudre”, o raio amoroso que a atingiu.

A partir desse instante, a garota de cabelo azul preenche os sonhos e as fantasias eróticas de Adèle. Bem que ela tenta namorar o menino “heavy metal” que só tinha gostado de um livro em sua vida, “Ligações Perigosas” e, assim mesmo, só por causa do jogo duplo.

Adèle adora ler, gosta de livros, sua pouca cultura está acima da média dos adolescentes que a cercam. Mas ela é uma pedra preciosa sem polimento. Come de boca aberta, lambe os dedos, se bem que sempre de um jeito charmoso, infantil.

Os beijos tímidos que troca com uma morena na escada do colégio, ela confunde logo com compromisso. A outra diz claramente que foi só uma brincadeira, para a decepção de Adèle.

Nela, brilha intensamente a infância, a ingenuidade e principalmente a carência, a necessidade de se apegar.

Quando encontra Emma, estudante de Belas Artes, mais velha do que ela, a do cabelo azul, a atração física é intensa, a cama é um lugar de paixão para as duas mas Adèle se consagra à outra. Ama perdidamente, enquanto Emma segue sua profissão de pintora com afinco e ambição.

E é patético perceber o quanto é exatamente essa fixação obsessiva, esse entregar-se toda e com intensidade rara, que vai ser sua perdição.

Num tempo de sexo banal, Adèle precisa de Emma para viver. E a câmera mostra bem isso. O talento de Adèle Exarchopoulos, 20 anos, faz o coração da gente doer por ela.

O diretor e roteirista Abdellatif Kechiche, tunisiano, 53 anos, de “O Segredo do Grão”2007, “Vênus Negra”2010, ganhou a Palma de Ouro de 2013 em Cannes, juntamente com suas duas atrizes.

Steven Spielberg, presidente do júri, disse a Adèle Exarchopoulos que o filme era uma das mais belas histórias de amor que já havia visto.

Imagens inspiradas, câmera ágil, quase sempre em “close”, retrato psicológico interessante dos personagens, a discussão de temas atualíssimos, sem pieguices mas com afetividade e delicadeza, fazem de “Azul é a Cor Mais Quente”, um filme marcante e indispensável.