Tabu

“Tabu”- Idem, Portugal/ Brasil/ Alemanha/ França, 2012

Direção: Miguel Gomes

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A África sempre se prestou a metáforas interessantes.

A sexualidade feminina, que  desafiava Freud a um difícil entendimento, ele chamou de “Continente Negro”.

Miguel Gomes, o diretor de “Tabu”, parece também partilhar dessa ideia da África simbolizando o lugar de sexo proibido, liberado por uma pressão extrema frente ao selvagem, ao primitivo e assustador. Na África de “Tabu”, o homem branco colonizador é seduzido pelo mistério de suas profundezas inexploradas, num cenário que o impele a experimentar o proibido.

O amor de perdição, tema tão caro a um dos grandes escritores portugueses, Camilo Castello Branco, titulo do livro de 1862, também inspira Miguel Gomes.

Em “Tabu”, há um prólogo que introduz o assunto, o amor perdido que impele à morte, na figura do português desconsolado que vai para a África para esquecer a mulher morta mas é arrastado para o rio onde espreita a única saída para o esquecimento.

O crocodilo, comedor de homens, animal fetiche, é quem o leva a seu fim.

A primeira parte de “Tabu”, “Paraiso Perdido”, passa-se em Lisboa, onde três mulheres solitárias entrelaçam suas histórias tristes.

Pilar (Teresa Madruga), de meia idade, sozinha no cinema, olha para nós, que somos a sua tela. Quantas vidas assistindo outras vidas, que servirão para nos lembrarmos de nós mesmos.

As outras duas mulheres são Santa, negra africana, que serve de companhia à dona Aurora, uma elegante senhora no fim de seus dias (Laura Soveral).

Ela sonha com macacos que se transformam em homens e tudo é uma desculpa para ela esquecer nas mesas do Cassino do Estoril, aquele amor que vive na África, aos pés do Monte Tabu, na fazenda de seu marido.

Estamos já na segunda parte do filme, “Paraiso”, onde novamente aparece o animal fetiche de Miguel Gomes, o crocodilo, brinquedo perigoso que Aurora (Ana Moreira), recém-casada, ganha do marido (o brasileiro

Ivo Muller).

No sopé do monte imaginário, cercado pela neblina onde os nativos enxergam demônios, a jovem, guiada pelo crocodilo, se deixa envolver pelo amor de Ventura (Carlotto Cota) que a fará viver dias de paraíso e inferno.

O preto e branco, a narrativa em “off” do amor proibido, as cartas trocadas entre os amantes, os diálogos que não ouvimos porque aqui o filme é mudo, só sendo ouvidos os sons da natureza, o vento, o coaxar dos sapos, o murmurar das águas, os grilos na noite e o rock dos anos 50, remetem o espectador ao seu próprio passado.

Miguel Gomes homenageia com seu filme, um grande diretor alemão do passado, F.W. Murnau, que fez “Tabu” em 1931 e “Aurora” em 1927.

“Tabu” de Miguel Gomes foi considerado pela revista “Cahiers du Cinéma”, a bíblia do cinema, como um dos 10 melhores filmes de 2012.

“Tabu” é um momento diferente do cinema a que estamos habituados mas prova que o amor ainda é e sempre será um tema que a todos atrai.

Diz o diretor Miguel Gomes que o verdadeiro paraíso perdido será sempre a juventude, tempo dos amores loucos e das paixões.

Só os mais velhos poderão confirmar isso, lembrando do passado com “Tabu”. Aos jovens, resta pensar que a hora é agora.

Augustine

“Augustine”- Idem, França, 2012

Direção: Alice Winocour

Estamos na França do final do século XIX, 1895, mais precisamente. Em Paris, o Hospital La Salpetrière, tem como um de seus médicos, Jean-Martin Charcot (1825-1893) que aí trabalhava e lecionava. Em 1892, ele tinha fundado ali uma clínica neurológica, a primeira na Europa.

Charcot ficou famoso pela apresentação de pacientes histéricas sob hipnose, com isso mostrando aos outros médicos, que esses sintomas que viam era uma doença do cérebro e não possessão ou bruxaria como pensavam até então.

Os gregos já tinham descrito essa condição e a relacionavam ao “útero ardente”. Daí o nome histeria, de “matriz”, no grego. Hoje sabemos que essa doença nada tem a ver com o útero e que pode ocorrer em homens também.

E quem eram as histéricas de Charcot? Mulheres que apresentavam convulsões, paralisias, dores abdominais e estados de humor exaltados.

E é para o La Salpetrière que mandam Augustine, 19 anos, vinda de uma família pobre, empregada doméstica numa rica casa burguesa. Durante um jantar que ela servia, após ver caranguejos vivos sendo cozidos numa panela, cai em convulsões perante os convidados dos patrões. Leva uma jarra de água no rosto, da patroa escandalizada.

Augustine é uma moça simples, analfabeta mas inteligente e sensível. Levada por uma prima ao hospital, chama a atenção de Charcot, já que apresentava sinais que ele reconheceu como histeria. Além das convulsões frequentes, paralisia da pálpebra direita e falta de sensibilidade na metade direita do corpo.

Levada ao anfiteatro, paramentada com um chapéu de plumas, quando hipnotizada caia ao chão em convulsão, acompanhada de gestos com forte conotação sexual, apresentando o famoso “arco histérico”, que era a postura com as costas dobradas para trás.

Alice Winocour, a diretora e roteirista estreante de “Augustine”, sabendo da responsabilidade de retratar uma figura real e referência até hoje na neurologia, estudou e pesquisou sobre Charcot. Mas acrescenta em entrevista:

“Documentei-me para poder exercer a minha liberdade. Não fiz um documentário, mas uma ficção.”

Assim, o talentoso Vincent Lindon, que faz Charcot no filme, é um homem frio, distante, autoritário, preocupado apenas com sua carreira e em angariar fama. Casado com uma viúva rica (Chiara Mastroianni), ele ambiciona pertencer ao circulo restrito dos médicos da Academia.

Assim, entretém colegas importantes em suas aulas sobre a histeria e ninguém melhor do que Augustine, carente e dependente da atenção de Charcot, para aprimorar cada vez mais sua performance perante o interessado auditório. Percebe-se que ela faria qualquer coisa por ele.

O próprio Freud frequentou as aulas de Charcot e se impressionou com o que viu. De suas reflexões sobre o que ouvia de suas próprias pacientes histéricas, que ele tratava com a terapia da fala e não mais com hipnose, nasceram os primeiros trabalhos da psicanálise sobre o inconsciente e o complexo de Édipo.

O filme desenvolve de maneira interessante a relação do pai da neurologia moderna com sua paciente infantil e imatura e sugere que ele a manipulava como queria. Ou assim pensava.

A fotografia é muito bonita e invernal, refletindo a frieza do hospital e do médico mas explode em cores vibrantes quando Augustine é preparada para se exibir nas aulas-espetáculo de Charcot. A manipulação e o dom de Charcot para ganhar prestígio, às custas de Augustine, ficam ainda mais evidentes.

A diretora optou por incluir em seu filme, testemunhos de mulheres atuais com roupas de época. Ficou artificial e incompreensível para o público. “Fausse note” como dizem os franceses.

A cantora Stéphanie Sokolinski, que é conhecida como Soko, está perfeita no papel da mocinha provinciana que amadurece a duras penas, com o que passa no La Salpetrière.

Alice Winocour fez um filme autoral e pós-feminista, na medida em que cria uma ficção corajosa sobre um relacionamento homem-mulher que reflete sobre sexo e poder. Original e elegante.