A Minha Versão do Amor

“A Minha Versão do Amor”- “Barney’s Version”, Estados Unidos, 2010

Direção: Richard J. Lewis

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Um charuto no cinzeiro, um copo de uísque sobre a mesa e um homem de meia idade no telefone.

“- Chame minha esposa!”, diz com voz pastosa.

“- São 3 da manhã. Ela não vai falar com você”, respondem do outro lado da linha.

“- E aquelas fotos dela nua, quando era bem novinha? Você não vai querer ver?”, pergunta o homem com ironia maldosa.

Assim somos apresentados a Barney Panofsky, 65 anos, quase careca e muitos quilos a mais em seu corpo atarracado e envelhecido.

A filha dele pergunta no dia seguinte:

“_ Por que telefonou às 3 da madrugada para o marido de minha mãe?”

Parece que Barney não se conforma com essa separação.

Ele tem uma produtora de TV que faz filmes classe B, a “Totally Unnecessary Productions”. O nome diz tudo.

Está encrencado com um delegado de polícia por causa de algo que aconteceu no passado e pior, sua lucidez começa a falhar. Vive perdendo o carro.

É aí que vamos começar a ver o desfile de suas memórias, em “flashbacks”. A versão de Barney sobre sua vida.

Essa história vai girar em torno às suas mulheres. Ou melhor, ex-mulheres, porque à esta altura já percebemos que ele está só e desconsolado.

Assim, vamos a 1974. Na Roma boêmia, Barney, cercado de amigos farristas, ainda com cabelos crespos e mais magro, se casa com uma pintora pornô, uma linda judia ruiva, desequilibrada e auto-destrutiva ( Rachelle Lefevre). Ela está grávida e pensa que o filho é dele. O final é trágico.

Já em 1979, no Canadá, Barney casa-se uma segunda vez com outra linda judia, desta vez morena, rica e faladeira (Minnie Driver).

É a ocasião de vermos um legítimo casamento judaico com muita dança, comida a granel, famílias emperiquitadas e muita alegria.

Só o noivo parece macambúzio, bebendo muito e até acompanhando um jogo de hóquei no bar com os amigos.

Será nessa festa de seu casamento que Barney vai conhecer aquela que ele diz ser a mulher de sua vida (a suave Rosamund Pike). Ela vai ser a mãe de seus dois filhos e, com ela, ele vive um romance atrapalhado pelos seus ciúmes e egoismo, mas intenso e correspondido.

Barney Panofsky é um personagem que vai nos conquistando ao longo do filme. Narcisista, ególatra e machista, sofre transformações por conta das “trombadas” que leva pela vida e acaba por nos comover. É um veiculo sensacional para a atuação de Paul Giamatti, que interpreta com paixão e sinceridade esse homem por vezes detestável.

Dirigido com competência por Richard J. Lewis, com roteiro de Michael Kanyves, o filme é a adaptação para o cinema do livro “A Versão de Barney” (Cia das Letras), de Mordechai Richter (1931- 2001), a quem o filme é dedicado.

Considerado um dos mais famosos escritores canadenses, ele retrata em seu último livro de 1997, com amor e ironia, o meio em que viveu: os judeus do Québec.

Os diálogos são ótimos e quem entende “idish”, o dialeto dos judeus da Europa Central, se delicia com as palavras enxertadas nas frases em inglês.

O humor judaico do filme é inteligente e peculiar. O toque picante fica por conta das cenas que envolvem o pai de Barney, um policial aposentado, mal educado e vulgar. Dustin Hoffman encarna essa figura, tão hilariante quanto inconveniente, com o talento de sempre.

“A Minha Versão do Amor” é um filme que quer divertir e consegue, fazendo com que a gente ria e também se emocione nas situações mais melodramáticas. Prende o espectador nem tanto pelo riso mas com a humanidade dos tipos que aparecem na história.

Vá ver e pense como a vida é contada sempre como uma narrativa subjetiva. A verdade, nesse mundo, só existe como a versão de cada um.

Nas histórias que contamos sobre a nossa vida sempre valerá o dito “Assim é, se lhe parece”. Concordam?

Homens e Deuses

“ Des hommes et des Dieux “, França, 2010

Direção: Xavier Beauvois

O diretor francês Xavier Beauvois escolheu o Salmo 82 da Bíblia católica como epígrafe de seu filme “Homens e Deuses”:

“Eu disse: Vós sois deuses e todos vós, filhos do Altíssimo.

Todavia, morrereis como homens e caireis como qualquer um dos governantes.”

O Livro dos Salmos é o coração do Antigo Testamento.

Lá estão poemas e cânticos que foram entoados em hebraico, há milênios, no Templo de Jerusalém e hoje são recitados como orações ou louvores tanto no judaísmo como no cristianismo e também no islamismo.

Escritos em hebraico, depois traduzidos para o grego e o latim, os salmos são um elo comum, e raro, entre as três grandes religiões monoteístas.

Foi certamente por isso que o sensível diretor Xavier Beauvois escolheu um salmo para introduzir o seu filme, que fala de solidariedade e de aproximação entre os homens, seja qual for a sua religião.

O filme levou o grande prêmio em Cannes, além de ganhar o César de melhor filme francês e foi campeão de bilheteria.

Essa história real que é contada lentamente, com simplicidade e emoção, nos leva para um mosteiro em uma região remota da Argélia, na última década do século passado.

Vamos observando, no filme, cenas do cotidiano da vida austera de oito monges que cuidam da terra e dos animais de uma pequena propriedade, fabricam mel, rezam e convivem em paz uns com os outros.

Mas a principal função deles é atender, sem intenções missionárias, a população do vilarejo próximo que recorre ao mosteiro em suas aflições, seja do corpo, seja do coração. Recebem conselhos e remédios ministrados de graça, com simpatia e cuidado.

Na feira local, os monges vendem seus produtos lado a lado aos moradores da vilazinha pobre.

Na singela capela do mosteiro, entoam cantos gregorianos com beleza e convicção.

O velho médico, o irmão Luc (Michael Lonsdale), atende todo dia uma longa fila de pacientes. São mulheres que trazem crianças, velhos com problemas de saúde de todo tipo e até feridos graves. Não recusa ninguém.

Mas o país está em plena guerra civil e começa a ter problemas com fundamentalistas exaltados e grupos armados de terroristas.

Um dia eles chegam àquela região longínqua.

Em uma noite de Natal, com a neve caindo, ao invés de paz na terra, esses homens de boa vontade terão suas vidas sacudidas por uma escolha difícil: ficar ou abandonar o vilarejo à própria sorte?

A população pobre precisa tanto deles que à certa altura do filme ouvimos uma moradora dizer aos monges:

“- Nós somos os pássaros, vocês são os galhos. Se forem embora onde vamos pousar? ”

Mas eles estão encurralados pelo governo argelino que quer vê-los longe da Argélia, já que lembram a odiada ocupação francesa e os grupos armados que não gostam da influência que os monges exercem sobre a população do vilarejo.

Não há possibilidade de negociação.

O prior (Lambert Wilson), mortificado por essa decisão terrível, busca a ajuda de Deus na natureza e o seguimos em longas caminhadas entre as árvores seculares. À mesa ouve cada um dos monges sobre sua decisão pessoal.

Dolorosa mas consciente vai ser a posição que eles vão preferir.

Uma última ceia comovente, ao som de um inesperado e bem escolhido “Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky, emociona e nos faz ainda mais próximos desses monges exemplares, que a câmara nos mostra em closes reveladores, interpretados por atores excepcionais. Cinema em tom maior.

A fé desses homens será a solução para um dilema que será colocado dramáticamente.

Um filme tocante e com um tema muito atual: até quando a humanidade vai preferir a violência ao diálogo?

Vá você também ao cinema pensar sobre esse assunto.