Nine

"Nine", Estados Unidos, 2009

Direção: Rob Marshall

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Nem todo mundo aqui no Brasil gosta de musical. Não existe entre nós essa tradição americana, mas alguns têm na memória um musical de Hollywood.
Na minha figuram com destaque “West Side Story” – Amor sublime amor (1961), dirigido por Jerome Robbins (um ícone da dança americana) e “All that jazz” – O show deve continuar (1979), dirigido e coreografado pelo extraordinário Bob Fosse. E claro que também “A noviça rebelde” (1965), “My fair lady” (1963), e “Moulin Rouge” (2001) entre muitos outros.
Até Woody Allen se curvou com graça a essa mania americana com o ótimo “Everybody says I Love You” – Todos dizem eu te amo (1996). Nesse filme, atores que nunca cantaram na tela desfilam sucessos que todos conhecemos. Mas esse é um musical diferente. Quase que para dizer que todos nós podemos cantar quando se trata de amor.
Já o problema com os musicais da Broadway é que quase todos sabem como é difícil fazer algo que parece fácil só quando é bem feito.
Que dirá unir corpo, voz e alma numa atuação que cause admiração?
Pois é disso que se trata “Nine”. Atores que normalmente só interpretam papéis, aqui cantam e dançam.
O diretor Rob Marshall, o mesmo de “Chicago” (2002), que ganhou seis estatuetas do Oscar, segue o seu destino.
Dessa vez resolveu levar para a telona um musical da Broadway de 1982, premiado com cinco Tony Awards (o Oscar da Broadway), considerado o melhor musical do ano com Raul Julia no papel principal. Aliás houve uma nova encenação em 2003 com Antonio Banderas.
Rob Marshall obteve quatro indicações para o Oscar de 2010, se bem que nenhum nas categorias principais: atriz coadjuvante, direção de arte, figurino e canção original.
Ora, não é pouca coisa reunir o elenco brilhante que ele conseguiu: Daniel Day-Lewis, Nicole Kidman, Penélope Cruz, Marion Cotillard, Judi Dench, Kate Hudson, Fergie e, para fechar a lista, nada menos que Sophia Loren.
E quase todos são “oscarizados” nesse grupo de atores. Daniel Day-Lewis, que faz o papel principal, ganhou duas vezes: por “Meu pé esquerdo” (1989) e “Sangue Negro” (2007).
A trama baseia-se no filme “Oito e Meio” do mítico Federico Fellini. Nele, Marcello Mastroianni fazia Guido Anselmi, um cineasta famoso que passava por um bloqueio no processo de criação ou pensava que vivia isso. Angustiado e cheio de dúvidas, ele tenta fazer o filme e em suas sucessivas tentativas acaba por realizar uma obra prima. Há um mergulho do cineasta em si mesmo num clima de sonho, pesadelo e delírios nos quais figuram as mulheres que o impressionaram em sua vida.
“Nine” conta a mesma história mas claro que Rob Marshall sabe que ele não é Fellini. E ainda bem. Porque seria desastroso fazer um “pastiche”, uma imitação barata.
Rob Marshall traz para “Nine” aquilo que ele sabe fazer muito bem: a sabedoria de suas tomadas de cena e cortes perfeitos.
Pois bem, nesse novo filme põe para dançar e cantar todo o elenco. Uns se saem bem, outros nem tanto. Mas o resultado final encanta a quem curte belas coreografias em lindos figurinos.
As sete mulheres de Guido, agora Contini, têm direito a números musicais diferentes, cada qual combinando com o caráter da personagem.
E são plumas e paetês em mulheres semi-nuas e escadarias no número de “vaudeville” ambientado num “Folies Bergères” de sonho para Judi Dench, que faz Lilly, a figurinista e confidente do diretor. De todas ela é a mais masculina:
“- Dirigir um filme não é nenhuma façanha. É saber dizer sim e não”, diz para o angustiado diretor.
Já para Penélope Cruz, Rob Marshall aproxima a câmara e capta toda a sensualidade da atriz. Arfante, só pernas e seios, ela dança com cordas. É Carla, a amante de Guido. Indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante, Penélope Cruz mostra que não é só Woody Allen que sabe dirigi-la bem.
Saraghina, que representa o encontro do menino Guido com a sexualidade, é vivida por Fergie, a vocalista do Black Eyed Peas. É a única cantora profissional do elenco e convence com a canção “Be Italian”. Da praia de Pesaro em 1920 em preto e branco, a cena passa para um cabaré com belas mulheres de preto e vermelho e botas, na coreografia mais envolvente do filme.
Marion Cotillard, para mim, é a que melhor encarna o espírito de “Oito e Meio”, fazendo Luiza, a mulher do cineasta. Canta lindamente “My husband makes movies” e surpreende com a coreografia de striptease na canção “Be on your own”.
A jornalista de Vogue vem na pele de Kate Hudson que canta o vibrante número “Cinema Italiano”, com alusões à moda dos anos 60, shorts dourados e franjas. Muito cintilante.
Para Sophia Loren, a “mamma”, tudo é diferente. Clima luminoso e aconchegante.Velas, branco e preto e adoração.
“- Você será eternamente meu, figliolo mio”, sussurra a Loren.
Nicole Kidman, a musa, é Cláudia a estrela do filme. É dela o dueto com Guido “In a very unusual way”. Vestido longo cor de carne, muito branca, ela é linda e fria como uma aparição.
Resta falar de Daniel Day-Lewis, a nova encarnação de Guido Contini. E ele o faz de uma maneira pessoal e forte no espírito do musical da Broadway, não do filme de Fellini.
Como ninguém, esse ator privilegiado embarca na viagem interior que faz a sua personagem à procura de inspiração. Reencontra-se consigo mesmo e compreende que o menino Guido sempre será o centro de sua criatividade.
“- Tenho quase 50 anos e 10 na cabeça”, reclamava antes de perceber que isso era o seu dom.
E o final é a tradução das palavras que o cineasta diz no começo do filme quando se esquiva das perguntas sobre como será seu filme “Itália”:
” – Você mata o filme falando dele. O filme é um sonho… Mas às vezes ocorre um milagre. Se você tem sorte, o sonho volta à vida novamente na sala de edição.”
“Nine” é esse milagre: um sonho de Rob Marshall tornado realidade. Acho que Fellini aprovaria.

Guerra ao terror

"Guerra ao terror" - "The Hurt Locker", Estados Unidos, 2008

Direção: Kathryn Bigelow

Kathryn Bigelow, aos 58 anos, conseguiu algo impensável. No dia 7 de março, na cerimônia do Oscar, seu filme “Guerra ao terror” poderá em tese ganhar os nove prêmios para os quais foi indicado.
E não são aqueles prêmios de consolação. O filme está na lista dos dez mais, ela é indicada para melhor direção, o ator Jeremy Renner é indicado para melhor ator, assim como são candidatos ao Oscar o roteiro original, a trilha sonora, a edição, a edição de som e a fotografia.
A história do filme é impar. Custou 11 milhões de dólares, rendeu 16 milhões na bilheteria e no Brasil foi direto para as locadoras em abril do ano passado. Só estreou na tela do cinema agora em fevereiro depois que os prêmios começaram a pipocar.
O grande feito de Bigelow foi ganhar o prêmio de melhor filme pelo sindicato dos produtores americanos. Para vocês entenderem o que isso significa, é bom saber que, nos últimos 20 anos, os vencedores desse prêmio e do Oscar de melhor filme empataram 13 vezes.
“Guerra ao terror” emplacou tantas indicações ao Oscar quanto “Avatar” de James Cameron, uma superprodução campeã de bilheteria, que destronou “Titanic” também dirigido por Cameron, e que já rendeu mais de 2 bilhões de dólares.
E a graça toda está em que esses dois diretores foram marido e mulher por dois anos e que Cameron incentivou a sua ex-mulher a fazer “Guerra ao terror”.
Se ganhar, Kathryn Bigelow será a primeira mulher a empalmar a estatueta de melhor direção.
“The Hurt Locker”, título original do filme, expressão em inglês para grande sofrimento, foi filmado na Jordânia, em um acampamento de refugiados palestinos, num verão de 46 graus de temperatura.
O roteiro é do jornalista Mark Boal que passou semanas com o exército americano em Bagdá em 2004. Com essas reportagens escreveu um livro que ganhou o Prêmio Pullitzer.
Utilizando a técnica de câmara na mão, cortes rápidos e muitos closes, a diretora consegue fazer com que nos sintamos dentro do cenário de inferno que se tornou Bagdá com a guerra.
Acompanhando um pelotão incumbido de desarmar as bombas espalhadas em uma cidade destruída, nos vemos em meio a escombros, ruas cheias de detritos, poeira, lixo.
A câmara impiedosa de Bigelow nos transporta para o cenário íntimo da guerra: medo, suor, respiração ofegante, olhares assustados, reações automáticas e pouco discernimento do que está realmente acontecendo.Visita os corpos humanos numa incômoda intimidade com o perigo.
O som também é um instrumento importante na criação de um clima de suspense porque é usado de maneira inteligente, ajudando a câmara a convencer na criação de um ambiente de pesadelo e caos, no qual a vida de cada um está sempre por um fio.
Até os animais estão sofridos nesse lugar de dura sobrevivência. Às tantas a câmara foca um gato que passa com a pata ferida.
Do lado iraquiano há crianças brincando nos becos e os adultos nas janelas, observando e acompanhando os lances daquele “reality show” de horror do qual participam.
Diferente de outros filmes de guerra a que já assistimos, “Guerra ao terror” não dá tempo para o espectador descansar. A ação onipresente e o efeito da câmara correndo, desfocando, quase que não encontrando o que possa dar um sentido à cena, induz em quem assiste ao filme um tremendo mal-estar.
A história do filme começa de chofre e acaba também assim. Há poucos momentos de reflexão sendo que mesmo assim o que predomina na mente dos soldados é a vontade de ir embora, contando os dias que faltam para voltar para casa.
A única exceção é o soldado interpretado com realismo por Jeremy Renner que faz um especialista em desarmar bombas. Ele veio substituir outro especialista morto em ação.
É o único da equipe que parece ter prazer com o perigo que passa. Chega às raias de um comportamento suicida.
Ele já desmontou 873 bombas e guarda lembranças de todas elas. É a sua coleção particular de “componentes”, como ele diz:
– “Acho interessante guardar esses pedaços de bombas que poderiam ter matado muitas pessoas…”
Sempre truculentos e com uma linguagem recheada de palavrões, mesmo quando voltam à base para uma noite de sono, não conseguem repousar. Stress,testosterona e adrenalina em altas doses.
Um dos soldados é um garoto que tem muito medo e joga videogames quando não está em ação. Neles se reconforta porque tem certeza de que os tiros aqui só vão acertá-lo dentro da maquininha onde sempre ressuscitamos. Mantém conversas picadas com um psiquiatra inepto que tenta ajudá-lo.
William James, o especialista, é o que tem mais dificuldade de se afastar da guerra. Na base propõe lutas, bebe muito com o seu colega negro Sanborn que mostra uma fachada dura, só desmentida pelo modo como conta os dias que faltam para voltar para casa.
Há uma cena patética na qual James coloca o capacete do traje de escafrandista que usa para aproximar-se das bombas, na cama, para tentar descansar sentado.
Penso que ele é o citado na frase que abre o filme e que diz mais ou menos assim: A emoção da batalha pode ser fatal porque é uma droga.
E o mais assustador para o espectador é entrar em contato com essa forma de prazer de brincar com a morte que substitui o convívio com a família, os amores, a vida civil.
A própria diretora comentou em um de suas entrevistas publicadas na Folha:
– “Não vou generalizar, mas, para alguns indivíduos, o combate pode ser uma coisa sedutora”.
O mais insensato de tudo isso é sabermos que esses soldados são voluntários, já que o alistamento para a guerra do Iraque não é obrigatório.
Kathryn Bigelow fala sobre seu filme:
– “Estou interessada em cinema como comentário social. E como entretenimento também, é claro. O filme deixa ver pela perspectiva do soldado e formar a sua opinião (….) Mostra a futilidade desse conflito em particular.Você sai do cinema mais bem informado”.
E pensar que ela rodou esse filme em plena era Bush…
E o pior: rapazes americanos continuam a ser mandados para o Iraque apesar das promessas em contrário do presidente Obama.