É Proibido Fumar

"É Proibido Fumar", Brasil, 2009

Direção: Anna Muylaert

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Até já virou clichê: este é o ano de Glória Pires.

Ela, que sempre comove e convence na TV, este ano brilhou no cinema. Seja na pele de dona Lindú (“Lula, o Filho do Brasil”), seja na Baby de “É Proibido Fumar”, ela merece todos os elogios que ganha.

Aliás, o 42º Festival de Brasília cumulou de prêmios esse filme. Além de melhor filme, melhor atriz (Glória Pires), melhor ator (Paulo Miklos) e atriz coadjuvante (Dani Nefussi), ganhou também o de melhor roteiro (Anna Muylaert), trilha sonora (Marcio Nigro) e montagem (Paulo Sacramento).

E por que ‘’É Proibido Fumar’’ agrada tanto?

Arriscando uma resposta acho que Anna Muylaert soube escolher os ingredientes que fazem o filme dela ser original sem ser pedante, ousa falar de banalidades sem ser raso e tem uma empatia enorme com os seus personagens de carne e osso. Além de diálogos naturais que vão contando a história.

O espectador se envolve desde o começo quando a tela é invadida pela fumaça de um cigarro. Alguém tosse sem parar. A televisão vende anéis no close de uma mão feminina…

Já está tudo ali mas a gente não sabe ainda e quer saber.

E se interessa pela história de Baby, professora de violão de idade indefinida, que mora em um apartamentinho recheado de pequenos nadas e que tem paciência e tédio com seus alunos sem talento mas é muito brava e reclamona com as irmãs que conseguiram mais da vida do que ela.

Dani Nefussi faz Teca, a irmã casada com filhinha pequena, que olha Baby com preocupação, irritada porque vê nela sinais de solidão não escolhida e libido reprimida.

Já Pop (Marisa Orth) é a irmã que “roubou” o sofá da tia Diná que teria sido legado como herança para Baby. Pop é uma executiva bem sucedida e também tenta ter paciência com a irmã surtada.

O sofá virou o objeto de desejo de Baby que não tem ninguém com que se preocupar, a não ser ela mesma.

O cigarro é o seu único companheiro

E por isso tudo, Baby logo se enreda com o novo vizinho (Paulo Miklos) que aparentemente não tem nada a ver com ela.

Ele gosta de Jorge Ben Jor, é guitarrista, toca sambão em um bar e não gosta de cigarro.

Ela gosta de Chico Buarque, toca violão e fuma sem parar. Mas quer cuidar de alguém.

E então, Baby faz o imenso sacrifício de parar de fumar em nome dessa carência que não suporta mais a solidão.

E repete alto o mantra aprendido em um grupo de auto-ajuda:

“O cigarro parece meu amigo mas é meu inimigo.”

E nós, espectadores, torcendo por Baby, identificados com ela por causa de nossas misérias particulares, vamos ver essa mulher lutar com todas as suas forças, passar por cima de todas as regras, desrespeitar normas e leis para ganhar o seu amor.

Disse Anna Muylaert em uma entrevista a Luiz Zanin Oricchio:

“- O filme era uma espécie de crítica ao casamento, àquilo que você perde quando casa. Mas o Paulo e a Glória entenderam aquilo como um amor que, mesmo não sendo uma grande história, é o amor possível.”

A trilha sonora premiada é uma delícia à parte. Além de Caetano, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil e outros, os solos de violão pontuam as cenas acompanhando ou sugerindo a emoção da hora: tristeza, nostalgia, reflexão, raiva, contentamento .

E não vá embora correndo do cinema. Porque senão você vai perder outra delícia: Glória Pires cantando ‘’  “Tatuagem” de Chico Buarque, enquanto passam os créditos finais:

 

“Quero ser a cicatriz

risonha e corrosiva

marcada a frio

ferro e fogo em carne viva.

…………………………………………………….

E nos músculos exaustos

do teu braço

repousar frouxa,murcha,farta

morta de cansaço…”

 

Uma voz afinada, comovida, realizada.

Assim saímos também do cinema, com o filme na cabeça.

A Partida

"A Partida" - "Okuribito", Japão, 2008

Direção: Yojiro Takita

Ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009, ”A Partida” saiu de cartaz em São Paulo depois de mais de 6 mêses de exibição.

E o filme trata de um tema aparentemente difícil para todos nós: a morte.

Aliás, pior ainda: o corpo do morto.Sabemos como esse assunto levanta tabus não só culturais mas também religiosos.

Talvez a maneira empática com que o filme nos leva a seguir a personagem principal, o ex-violoncelista Daigo Kobayashi, interpretado com muita arte por Masairo Motoki,  seja a chave para entender o seu sucesso.

Passo a passo seguimos Daigo,  primeiro tocando na orquestra ( e sentimos com ele a decepção quando esta é dissolvida e ele fica sem emprego), depois a aventura de se mudar com a mulher para a cidadezinha de sua infância.

E vamos descobrindo com a personagem os horrores, nojo e medo que se seguem à sua hesitação em prosseguir na carreira de “encomendador de corpos”que ele não escolhera livremente.

Quase que arrastado pelo patrão, que será seu mestre nessa difícil arte, Daigo cresce, amadurece e aprende a ver beleza onde antes existia apenas asco.

A experiência com o ritual que antecede a colocação do corpo no caixão vai mudar radicalmente a vida de Daigo.

A cena inicial do filme na qual uma tela branca vai mostrando, aos poucos, um carro que trafega em uma estrada em meio a uma nevasca é paradigmática.

Tanto que ela é repetida no meio do filme e aí já compreendemos melhor o que Daigo diz:

“- Vejo o quanto foi inexpressiva a minha vida até agora.”

O espectador também se encanta com a extraordinária beleza da cerimônia presidida por Daigo, que se tornou um profissional dessa arte.

Antigamente no Japão as famílias se ocupavam em preparar os corpos dos parentes mortos mas, depois, essa tarefa foi transferida para profissionais e assistida pela família.

Daigo é iniciado nesse ritual por um mestre, Shoel Sasaki (Tsutomu Yamasaki). Apreensivo nas primeiras vezes e confiante depois,fazendo ele mesmo o trabalho, Daigo e seu mestre executam os passos dessa cerimônia com gestos suaves,quase carícias. Primeiro distendendo os músculos da face do rosto da pessoa morta, depois despindo-a com pudor para que nenhum membro da família veja nenhum pedaço da pele do morto, depois ainda limpando-o com delicadeza.

Aí o corpo é vestido e por fim a maquiagem faz com que o rosto ganhe brilho, beleza e…vida.

Este é o momento mais emocionante para os familiares que reencontram a pessoa que morreu.

E é o momento do adeus.

Todos fixam em seus corações a imagem bela que ficará na lembrança. E só aí é que o corpo é colocado suavemente no caixão.

A cerimônia independe da religião da família. No filme vemos tanto um enterro cristão como uma cremação budista.

E como o roteiro convida, seguimos Daigo também em sua vida pessoal. Assistimos à sua raiva contra o pai que abandonou a família quando ele tinha seis anos e, depois, à sua reconciliação madura com o homem que lhe ensinara a gostar de música e lhe dera o violoncelo da infância.

É com esse instrumento que Daigo toca no campo, ao ar livre, em meio a montanhas nevadas e gansos cruzando os céus, enquanto procura o pai dentro de si.

A mais comovente lembrança de Daigo envolve uma tradição que seu pai lhe ensinara: a linguagem das pedras-cartas. Aprendemos então que, antes de existir a escrita, as pessoas mandavam pedras umas às outras. Conforme a textura, o tamanho e a cor, elas inspiravam sentimentos diversos em quem as recebia.

Uma vez o pai de Daigo o leva ao rio e eles trocam pedras entre si.

Aquela que o pai lhe dera, ele encontrou junto ao violoncelo da infância, embrulhada numa partitura.

Mas onde estará aquela que ele deu ao pai?

A cena final do filme comove até o mais empedernido espectador.

Na evolução dessa história, contada com maestria, a música ajuda a aprofundar as emoções. Joe Hisaishi é o responsável pela trilha sonora que vai da Nona Sinfonia de Beethoven com o coro cantando a “Ode à Alegria” até a “Ave Maria” de Gounod e o “Wiegenlied” de Brahams em solos de violoncelo e a belíssima canção-tema do filme.

“A Partida” fala de um tema universal mas é japonês até no mínimo detalhe. E esse é o seu mérito. Pois não é falando de sua aldeia que o homem é compreendido por toda a humanidade?