Um Método Perigoso

“Um Método Perigoso”- A Dangerous Method”- Canadá/ Reino Unido /Alemanha, 2011

Direção: David Cronenberg

Na primeira cena do filme, a paisagem plácida e ajardinada da Suiça contrasta com o comportamento feroz de uma moça que grita, ri e se contorce dentro de uma carruagem, enquanto dois homens tentam controlá-la.

Sabina Spielrein (1885-1942), judia russa de 19 anos, nascida em uma família abastada, é internada no Hospital Burgholzli em Zurich (um dos melhores da Europa) em 1904. Ela vai ser o centro das atenções de David Cronenberg em seu filme “Um Método Perigoso”.

Mas vamos introduzir os outros personagens.

Carl Gustav Jung (1875-1961), suíço, 30 anos, era médico no hospital onde Sabina foi internada como histérica.

Ele era um homem alto e forte. Casado com uma mulher riquíssima, morava bem e não dependia de seu trabalho para sobreviver.

No palco principal, os dois personagens, Sabina e Jung, se aproximam através do método criado por Sigmund Freud (1856-1939), judeu nascido na Áustria, o pai da psicanálise, fundada em 1900, quando da publicação de seu livro “A Interpretação dos Sonhos”.

Ao contrário de Jung, Freud já tinha fama mas vivia sem luxos, com a mulher, a cunhada e seis filhos num apartamento de classe média em Viena.

Jung, estudioso do comportamento humano, fazia pesquisas nessa área mas não conhecia Freud pessoalmente. E tudo começa quando escolhe Sabina para ser a sua primeira paciente a ser tratada através da “talking cure” ou seja, um tratamento que faz o paciente falar sobre os males que o afligem, criado por Freud.

É bom lembrar que, nessa época, os doentes mentais que possuíam posses eram tratados com banhos, massagens, hipnotismo e outros métodos ineficazes. Aos pobres, restava apodrecer numa instituição pública.

Em 26 de outubro de 1906, Jung toma coragem e escreve a Freud:

“Trato no momento, utilizando seu método,de uma histérica. Caso difícil; uma estudante russa de 20 anos, doente há 6.” (in “Freud/ Jung-Correspondência Completa- Ed. Imago- p.47)

E, através de Sabina e seu tratamento, os dois médicos se aproximam, trocam cartas e se visitam.

Mas, Freud e Jung eram muito diferentes. O que os uniu, também os separou.

Jung, desde o principio não simpatizava com o papel central que Freud dava à sexualidade nas neuroses. Mas, se aproxima dele, a quem trata como um mentor. E o caso era que Jung se interessava por áreas especulativas que pareciam superstições para Freud.

Ora, isso era exatamente o que Freud não podia admitir em quem depositava a esperança de ser seu herdeiro. Mais, a quem pedia que o ajudasse a defender a nascente psicanálise, para que ela fosse vista com seriedade e aceita por círculos respeitados da academia. E, principalmente, Freud precisava de um ariano influente para levar a psicanálise a grupos mais amplos do que aquele  que o cercava em Viena, constituído por médicos judeus.

Voltemos ao filme.

David Cronenberg, conhecido por seus sedutores toques de perversão nos filmes que já fez, dessa vez adaptou um livro (“A Most Dangerous Method – The Story of Freud, Jung and Sabina Spierein”) de John Kerr e uma peça de Christopher Hampton ( responsável pelo roteiro), “The Talking Cure”.

Mas, Cronenberg não deixou de colocar aqui também sua assinatura. O que se conhece como rumores de um encantamento romântico entre Jung e sua paciente Sabina, transforma-se numa relação sado-masoquista, na qual Jung, amante cruel, dá a Sabina o que ela pede: surras misturadas a beijos e orgasmos.

A menina que era espancada pelo pai e que transforma a dor em prazer para se defender, entrega-se agora, com paixão, ao homem que faz com que ela fale e relembre a excitação que sempre sentiu com experiências de humilhação.

As cenas imaginadas por Cronenberg, belamente eróticas, são uma “licença poética” que asseguram o seu jeito de ser cineasta.

E aqui reside justamente o perigo do método analítico, quando o psicanalista mal formado esquece o lugar que ocupa e atua as fantasias do seu paciente ao invés de interpretá-las.

Michael Fassbender e Vigo Mortensen são Carl Jung e Sigmund Freud. Excelentes atores mas distantes dos personagens reais.

Keira Knightley é Sabina Spilrein. Um pouco exagerada nos tiques e contorsões no início do filme, incarna bem a bela jovem que se cura dos traumas do passado e se torna uma das primeiras mulheres psicanalistas freudianas.

O filme é belo e nostálgico. Merece ser visto por quem se interessa pelos conflitos que se escondem na alma dos seres humanos.

Este post tem 0 Comentários

  1. ana katia vieira disse:

    Gostei do comentário. Surpreendeu-me tb, a autora e idealizadora do blog, que até então eu considerava uma dondoca. Aproveito para fazer um mea culpa e parabenizá-la.

    • Eleonora Rosset disse:

      Ana Katia,
      Sabe que eu adorei o que vc disse? Nada pior para alguém como eu que estudou Direito, e tem diploma, e Psicologia na PUC, além de formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise por 8 anos, ser chamada de dondoca. Nada contra mas eu não sou pq gosto da profissão que escolhi e exerço há 25 anos.
      E, como vc vê, adoro tb cinema e gosto de escrever sb os filmes que mais gosto.
      E o melhor de tudo é ter pessoas como vc que gostam do que eu escrevo!
      Obrigada e volte sempre!

  2. ana katia vieira disse:

    Eleonora, agora que já me desculpei, pretendo me valer de suas dicas para conferir bons filmes. Tb sou apreciadora de cinema e gostaria de conhecer sua opinião sobre o badalado filme de Bertrand Bonello, L’Apollonide. Sugiro a propósito o comentário de Francisco Bosco – filho do João compositor -, um filósofo que escreve às quartas-feiras no Segundo Caderno do Globo. Carlos Drummond de Andrade sentenciou que “amar se aprende, amando”. Pois é, escrever se aprende, escrevendo. Seu texto é elucidativo, pertinente e despretencioso.

    • Eleonora Roset disse:

      Ana Katia querida,
      Não tem nada do que se desculpar, viu?
      Eu vi o filme “L’Appolonide” mas, apesar de gostar muito do cinema francês, não me pareceu um filme que merecesse mts comentários. É bonito, a recriação de época é mt bem feita, figurinos adequados, interpretações idem mas faltou alguma coisa para me dar vontade de falar sb ele. Pode ser tb que eu não estivesse num dia mt inspirado…Isso acontece.
      Espero continuar tendo vc como interlocutora! bjs

  3. Erandy Albernaz disse:

    Tão diferente da Psicanálise dos nossos tempos, hem?
    Todas as mídias adotaram esta Psicanálise dos seus iniciadores, e ……..
    A SBP de Ribeirão Preto discute esta semana esta questão: Os tempos atuais e a Psicanálise dos nossos tempos.
    Vc também tem esta impressão?
    Nossas histéricas hoje são bulímicas, anoréxicas, que romances seriam possíveis??????
    bjo

    • Eleonora Rosset disse:

      Erandy querida,
      Os personagens desse filme são seres excepcionais. A histeria da Sabina, conpreendida, transformou-a na mulher que ela tinha nascido para ser.
      Eram outros tempos… As pessoas eram adultas.
      Infelizmente hoje estamos imersos numa infantilização empobrecedora.
      E os romances são do mesmo naipe…
      Há exceções, claro.
      Bjs

      • Erandy Albernaz disse:

        Concordamos então quanto a isto?
        Para onde estamos indo?
        Mas como cinema, é ótima, como refexões psicanalíticas também.
        Vc está conseguindo aplacar o meu fanatismo pelo cinema que fazem muita gente que eu gosto aqui nesta terrinha. rsrsrsrsrsrsrsr.
        bjo

  4. Erandy Albernaz disse:

    “cinema que faz muita gente” (corrigindo)
    ” como cinema é ótimo” (corrigindo)

  5. Graça Sette disse:

    Eleonora,
    Saí do cinema sem saber se gostei ou não,do filme. Fui gostando aos poucos.
    Não costumo ler críticas e leituras antes de assistir aos filmes . Leio depois.
    Me chamou a atenção a fala atribuída a Freud que tento: Se contar meu sonho, perco a autoridade.
    Comente, please, como vc interpretou.E adorei as roupas femininas,as batas de rendas.
    Com relação à Dama de Ferro me impressionou a 1a cena na padaria, da invisibilidade dos velhos. Bises. Graça

  6. Dorli Kamkhagi disse:

    Neste filme tão bem articulado por Eleonora a “nossa psicanalista”, fica também o lado tão humano e cheio de contradiçõesdestes dois grandes avatares da Psicanálise .
    Ver Freud e Yung , num diferente relato além dos textos conhecidos nos ensina uma outra dimensão “do outro”. As vezes não tão bela.!!!!

  7. Eleonora querida,
    Achei extremamente apropriados os seus comentários sobre o relacionamento de Carl Jung e Sigmund Freud.No entando, como médico,não gostaria de classificar as várias infrações das mais importantes leis de ética médica como algo relativamente comum e banal. Como você bem comentou, o psicanalista não pode se aproveitar das fantasias e delírios de suas hitéricas pacientes para seduzi-las, contando com a profunda ascendência mental e força de sedução que o médico quase sempre tem sobre as suas pacientes. Um pouco mais adiante no filme, nota-se a crítica velada e depois tornada efetiva e completa na correspondência entre os dois médicos.Creio eu, talvez, interpretando de uma foram um pouco severa o que o personagem Freud, mostra-se no filme:uma profunda decepção com aquele que seria o seu mais fiel seguidor.
    Parodaxal no meu ponto de vista é a famosa cena do chá, em que Frau Jung mantém um diálogo amigável com Sabine já formada em medicina e especialista em psiquiatria infantil que nós espectadores vimos chegar da Rússia numa cena quase que grotesca de uma mulher em crise grave de histeria.Cena esta que como você apropriadamente indicou,mostra o exagero de tiques e contorções da personagem-paciente.
    Achei a sua visão do filme extremamente perspicaz aos olhos da psicanalista que é cinéfola.

  8. Mira Baeta disse:

    Eleonora… fiquei encantada por esse relato e quero muito ver o filme. Mas fiquei um pouco confusa… assisti, há algum tempo, “A jornada da alma”, que também retrata a vida de Sabina, a fundação da Creche Branca e sua relação com Jung. A atriz que fez Sabina é Emilia Fox e Jung foi interpetado por Iain Glem. Achei o filme lindo, chocante e tocante!!
    Queria saber se você o assistiu e se é o mesmo filme, em roupagem e atores novos…
    Também queria saber se você assistiu “Shame” (também com o fantástico Fassbender. Vi a sinopse, fiquei curiosa, mas ainda não pude assistir. E, na verdade, acho que estou me acostumando a ver suas opiniões primeiro… rss…
    Espero sua resposta. Um beijo!

  9. Mira Baeta disse:

    Opa… acabei de encontrar aqui seu post sobre “Shame”… Pula essa parte do meu comentário anterior… 🙂
    Beijo!

  10. Gianni Schicchi disse:

    Prezada Eleonora, assisti recentemente o filme e estava curioso a respeito de como estava sendo visto. Fiquei impressionado com a quantidade de equívocos que foram utilizados por comentadores em outros sites, para justificar o comportamento de Jung e desqualificar Freud. Jung certamente desconheceu a transferência e a contratransferência quando se envolveu com suas pacientes, sei que na época nem um, nem o outro, eram conceitos totalmente desenvolvidos. De qualquer maneira, o distanciamento era certamente um comportamento ético esperado. Ignorou até o final da sua vida as acusações de simpatia com o nazismo que foram resultado do seu oportunismo, o que pode ser percebido claramente no texto de Andrew Samuels (http://www.history.ac.uk/resources/e-seminars/samuels-paper). Este um psicólogo “profundo”, pós-junguiano, professor na Inglaterra. Reconheço a humanidade destes dois homens, mas gostaria de destacar que Jung utilizou-se durante sua vida de recursos que o ajudaram a se promover, mesmo quando eles eram eticamente indefensáveis. Enquanto as contribuições de Sabina Spielrein constituem nota de rodapé na obra freudiana, ela nunca foi além de uma paciente/amante para Jung. Escrevi porque gostei do que li no seu texto. Obrigado pela atenção.

  11. vanessa veloni disse:

    Eleonora,
    Não entendo.não estudo e não conheço quase nada de psicanálise. Mas ADORO o assunto. Assisti o filme e fiquei desapontada ao saber deste envolvimento do Jung com sua paciente. O analista entra na vida da paciente, realiza uma fantasia que acaba sendo dele também, no momento que a deseja, e… sai!
    Quem dará conta da “cabeça” da paciente depois? é simples assim?
    Um abraço dessa humulde ignorante.

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