Estrelas Além do Tempo

“Estrelas Além do Tempo”- “Hidden Figures”, Estados Unidos, 2016

Direção: Theodore Melfi

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Quando vemos aquela menininha negra demonstrando um complicado raciocínio matemático com clareza e autoridade, ficamos certos de que ela vai ser uma figura importante no futuro.

E assim será. O filme mostra que, em 1961, Katherine Johnson (Taraji P. Henson) vai trabalhar na NASA em Hampton, Virginia, como um computador. Naquele tempo, computadores eram pessoas superdotadas para cálculos necessários ao programa espacial americano, que estava atrasado em relação ao soviético, em plena Guerra Fria.

A cena de abertura mostra três mulheres negras com um problema mecânico no carro que as leva, juntas, todo dia para o trabalho. Chega um carro com um policial que se espanta ao saber que trabalham na NASA.

Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monaé) são as companheiras brilhantes de Katherine, que conseguiram um trabalho importante por seus próprios méritos.

Mas logo vamos nos dar conta de que a vida para qualquer negro, especialmente na conservadora Virginia, não era nada fácil naquela época em que havia uma política de segregação entre brancos e negros. Assim, nos ônibus públicos deveriam sentar-se nos lugares do fundo, havia escolas só para brancos, bebedouros e banheiros públicos separados.

A história de Katherine é a melhor contada no filme. Viúva, com três filhas pequenas e trabalhando até tarde, já que tinha sido recrutada para um trabalho especial de cálculos sobre o lançamento, trajetória e retorno do foguete Atlas, que poria um primeiro americano em órbita, tinha uma vida difícil. Era a única mulher na sala de Al Harrison (Kevin Costner), chefe do programa.

Pobre Katherine. O racismo fazia com que tivesse que correr mais de 500 metros para poder ir ao banheiro. E Harrison se irrita com suas ausências, sem perceber que não havia banheiros para negros no prédio onde trabalhavam.

Mais tarde, ele vai se dar conta disso e mudar muita coisa no que dizia respeito à segregação na NASA.

Dorothy também sofria pelo fato de não ser reconhecida como chefe de departamento, onde trabalhava coordenando várias moças negras. Sua chefe (Kirsten Dunst) a tratava com frieza e menosprezo.

Mary vai ter que entrar na justiça para poder estudar à noite numa escola para homens brancos e tornar-se a primeira engenheira mulher e negra da NASA.

Essas três mulheres inteligentes, brilhantes e lutadoras vão sobressair-se e fazer um trabalho importante, que só foi reconhecido há muito pouco tempo.

O diretor Theodore Melfi adaptou o livro do mesmo nome do filme em inglês: “Hidden Figures” de Margot Lee Shetterly.

É um filme bem cuidado, com boa reprodução da época, tanto nos cenários como nos figurinos e conta a história da conquista do espaço de maneira tradicional, usando do talento do elenco, todos muito bem em seus personagens.

O racismo e a misoginia não são apenas americanos. Sabemos bem como existem de variadas formas em quase todos os países. Mas o impacto dessa história das três mulheres negras, tão importantes na corrida espacial americana, ainda que com tardio reconhecimento, é bem contada nesse filme e incentiva a refletirmos na injustiça e falta de bom senso que levam a esse tipo de comportamento.

O filme foi indicado a melhor filme e melhor atriz coadjuvante (Octavia Spencer) no Oscar.

 

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Jackie

“Jackie”- Idem, Estados Unidos, 2016

Direção: Pablo Larraín

Quem era pelo menos adolescente naquele 22 de novembro de 1963, vai se lembrar onde estava e o que fazia quando a notícia chegou. John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos, tinha sido assassinado em Dallas. As imagens repetidas incansavelmente nas TVs, ficaram na nossa memória.

Pablo Larraín, o talentoso diretor chileno que assinou “No”, “O Clube”, “Neruda”, escolheu como assunto de seu primeiro filme em inglês a figura mítica e complexa de  Jacqueline Bouvier Kennedy (1929-1994).

Mas claro que ninguém que viu seus filmes anteriores espera uma biografia cronológica. Larraín vai trazer para a tela muitas Jackies, em diferentes momentos de sua vida como mulher do presidente John Kennedy.

A primeira é entrevistada em Hyannis Port, uma semana depois do assassinato, para a revista “Life”. O ator Billy Crudup faz o jornalista e historiador Theodore H. White que ficou horas a fio com Jackie.

Ele quer que ela conte sua própria versão dos fatos mas não vai ser fácil como ele pode ter pensado. É Jackie quem vai conduzir a entrevista para onde ela quer e vamos vê-la proibir que várias passagens do que ela disse sejam escritas. Ou que ele sequer cite que ela fuma.

Vislumbramos a força e a autoridade que habitam aquela mulher, aparentemente frágil. A Jackie privada está na tela como nunca a vimos.

E as primeiras imagens da famosa visita à Casa Branca, conduzida por Jackie e televisionada pela CBS em 1962 aparecem em preto e branco. Aos que a criticavam por gastar dinheiro do governo com tecidos e decoração, ela mostra o cuidado com que os espaços públicos, abertos à visitação, foram restaurados com móveis de época, encontrados por “experts”.

O ponto alto é o quarto de Lincoln, ornado com a cama original do famoso presidente e os retratos a óleo dele e de sua mulher.

Larraín conta que colocou, entre as imagens que recriaram a Casa Branca, passagens do documentário original. São quase indistinguíveis.

E começamos a admirar a interpretação mediúnica de Natalie Portman, que recriou a voz, o porte e o jeito meio longínquo mas afável da primeira dama.

Há toques estratégicos como a amiga e assistente de Jackie, Nancy Tuckerman, interpretada por Greta Gerwig que gesticula atrás das câmeras da TV, pedindo que Jackie sorria.

Assim, Larraín mostra e recria a Jackie das imagens que todo mundo viu mas, numa demonstração de seu gênio e da criatividade do roteirista que ele escolheu, Noah Oppenheim, prêmio de roteiro no Festival de Veneza, mostra também imagens que nunca ninguém viu, mas que parecem ser as verdadeiras.

Emociona e angustia ver Jackie lavando o rosto para tirar o sangue do marido de seu rosto e cabelos, no mesmo banheiro do AirForce1 que a trouxera impecável e linda em seu tailleur Chanel rosa, debruado de azul marinho, colocando o chapéu “pillbox” que ela usaria durante o evento em Dallas.

Além dessas, há a Jackie de vestido longo de seda verde aplaudindo Pablo Casals num concerto na Casa Branca.  A que dança alegre e romântica com o marido no vermelho black-tie. A mãe que tem que dar a notícia trágica aos filhos. A que se apoia no cunhado Bob (Peter Sarsgaard). A viúva que conversa com o padre (John Hurt) sobre a dificuldade das lembranças boas não se misturarem com as terríveis. E aquela que, contra tudo e todos, faz da cerimonia fúnebre do presidente, algo majestoso e triste, sem ter tempo para chorar o luto.

Finalmente, a imagem íntima de Jackie, já viúva, insone, de camisola, colocando na vitrola o disco de “Camelot”, cantado por Richard Burton, de que o marido tanto gostava.

Natalie Portman mostra talento e sensibilidade ao incarnar  um mito, sem medo de errar. Ela está magnífica.

Pablo Larraín consegue conquistar mais uma vitória para a sua carreira de sucesso. Também sem medo de errar ao mostrar o avesso imaginário, mas tão verdadeiro, em sua recriação  de uma lenda do século XX.

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