Vênus Negra

"Vênus Negra"-"Vénus Noire" França/ Itália/ Bélgica, 2010

Direção: Abdellafif Kechiche

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Sabemos todos como a cobiça sanguinária dos brancos ocidentais colonizadores voltou-se sempre, sem trégua, contra os povos ditos “primitivos”, de todos os continentes pelos quais passaram.

A história recente da humanidade também registrou genocídios, escravidão, o Holocausto.

É tênue a fronteira que nos separa da barbárie…

O diretor Abdellafif Kechiche, tunisiano residente na França, em seu filme “Vênus Negra”, que fez escândalo no último festival de Veneza, resume em um só caso real, todo o horror do preconceito e arrogância do homem branco europeu.

Seu filme é duro, sofrido, longo. Conta a história verídica de Saartjie Baartman, uma africana da Cidade do Cabo, levada para a Europa por seu empregador, um africâner (vivido pelo magnífico ator André Jacobs), para ser exibida como objeto exótico em feiras, na Londres do século XIX, mais precisamente 1810.

No show montado por seu patrão, ela era mostrada como uma selvagem, em uma jaula. Londrinos pagavam entrada para vê-la rosnar e dançar passos tribais. Eram convidados a tocá-la sem medo, como se fosse um animal. Para escapar do sentimento de humilhação, ela se entrega ao álcool e cala-se frente às palavras mansas ou ferozes do seu patrão, conforme o dia, que lhe prometia dinheiro, glória e volta à terra natal.

O calvário da Vênus negra prega o espectador em sua poltrona do cinema, fazendo-o passar do susto à vergonha e indignação.

Interpretada pela atriz cubana Yahima Torres, estreante no cinema, a “Vênus Negra” é o retrato do que acontece quando nos deparamos com um ser diferente de nós mesmos. Até hoje. Estão aí os exemplos da violência, intolerância e crueldade dos homens contemporâneos quando se confrontam com “o outro”, diferente deles, seja pela cor, religião, preferência sexual, idéias.

O filme começa em 1815, na França, mais exatamente Paris, na Academia Real de Medicina.

Um professor de olhar duro, comenta para as pessoas sentadas em um anfiteatro:

“- Nunca vi rosto tão semelhante ao dos macacos”, diz mostrando a cabeça de um molde em gesso, pintado para parecer real, de uma negra alta, seios fartos e nádegas enormes.

O professor continua:

“- Nenhum negro pode ter dado origem a nenhum povo pertencente ao que chamamos a raça branca. Já os egípcios (e mostra a cabeça de uma múmia) pertenciam à mesma raça que nós. Não apresentavam crânios comprimidos como essa espécie que temos aqui.”

Depois discorre sobre o “avental hotentote”, nome que encontraram para designar o aparelho genital da fêmea que tem na “Vênus Negra” uma representante:

“- Não se assemelha em nada à genitália das mulheres européias. Suas nádegas e seu aparelho genital externo são muito semelhantes aos de um orangotango.”

Devido a essas características peculiares, o corpo dessa mulher, depois de exibido em feiras, onde era tocado por todos num misto de horror e excitação, faz com que seja usada como atração em orgias nos salões parisienses decadentes e finalmente num bordel, no qual ela já estava distante da realidade de sua vida,

doente e entregue ao alcoolismo.

Por incrível que possa parecer, seu corpo dissecado e moldado em gesso, foi exposto no Museu do Homem em Paris até 1974, quando começou o movimento que culminou em sua volta à terra natal em 2002.

Quem ficar até o fim do filme, verá um mini-documentário que mostra os restos mortais da Vênus Negra serem recebidos com honras pelos descendentes dos hotentotes, povo dos bosques africanos, quase dizimados com a chegada dos colonos franceses e holandeses aos lugares que habitavam, já que se recusavam a ser escravizados.

Exemplo cruel do que os homens fazem a seus próprios semelhantes, “Vênus Negra” é um exercício de condenação do racismo.

Obrigatório para quem não fecha os olhos a um lado maligno que nos habita e não quer ser controlado por ele.

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Potiche – Esposa Troféu

“Potiche”, França, 2010

Direção: François Ozon

Dessa vez, o jovem diretor francês François Ozon, deixou de lado o tema da perda, tão presente em seus filmes sempre originais e escolheu fazer uma comédia em tom de farsa sobre a mulher no final dos anos 70, na França.

“Potiche” segue o filão explorado em “Oito Mulheres” (2002) do próprio Ozon, também com Catherine Deneuve: comédia e canções. E mulheres como prato principal.

Como sempre, o tradutor se engana, passando uma idéia que nada tem a ver com o filme, embarcando na tradução americana. “Potiche” é um objeto de decoração, belo mas inútil.

Então, é sobre a esposa decorativa que Ozon quer contar uma história. Mas, ele vai além dessa intenção, porque o papel de “potiche” pode mudar de um personagem para outro, conforme o desenrolar da trama do filme. Não é uma exclusividade feminina.

Em entrevista a Luiz Carlos Merten, Ozon assim falou sobre “Potiche”, um dos seus maiores sucessos de público na França:

“Em tom leve e divertido, este é um filme que me permite falar de tudo. Do amor, da família, dos negócios, das diferenças entre homens e mulheres. Mas o que realmente me encantou foi a mudança da personagem. Catherine (Deneuve) evolui de esposa para administradora e política. Mostrar essa transformação foi estimulante.”

Sim, porque no começo do filme, uma Catherine Deneuve alienada, saltita alegrinha por um caminho no bosque, vestida de roupa de ginástica vermelha. Uma música assobiada a segue. Sapatinhos brancos e cabelo enrolado preso numa redinha, ela é uma Branca de Neve de contos de fada. Conversa com os animais, manda beijinhos para os passarinhos e saca do bolso um caderninho para escrever um poema.

De avental, na cozinha amarela de sua casa bela casa, serve o café da manhã para o marido arrogante e mal humorado, que preside a fábrica de guarda-chuvas que Susanne trouxera ao casar-se com ele:

“- Não se esqueça de que você é Mme Pujol”, diz ele ao saber que a empregada não estava.

“- Todo dia eu repito para mim mesma: Eu sou Mme Pujol. Eu sou Mme Pujol”, responde Suzanne compenetrada e com uma ponta de ironia.

Catherine Deneuve, 67 anos, a sempre “Bela da Tarde” de Buñuel, está à vontade no papel de esposa submissa e mulher objeto que vira a mesa com elegância. Diz ela nas entrevistas que riu muito durante as filmagens.

Seus vestidos “chemisier”com laço no pescoço, conjuntos de saia e blusa coordenados, com casaquinho nos ombros e cabelo armado e duro de laquê, nos fazem viajar para os anos 70.

Seu belo rosto e seu talento de atriz fazem o resto. Ela domina o filme. É a estrela.

Sendo que, de quebra, assistimos em “Potiche” a um reencontro histórico: Deneuve e Depardieu.

Ele, enorme de gordo, não perde o charme que o consagrou. Ela contracena com ele com carinho e verve. Velhos amigos.

O elenco é ótimo e a direção de Ozon, direção de arte e fotografia irretocáveis.

Todos os estereótipos dos anos 70 estão presentes: o marido que tomou a fábrica da mulher (Fabrice Luchini), a secretária amante do patrão (Karen Viard), a filha conservadora e interesseira (Judith Godreche), o filho com idéias de esquerda que não se decidiu a “ sair do armário” (Jeremie Renier), o deputado de esquerda que virou prefeito da cidade (Gérard Depardieu) e que tem uma história antiga com Suzanne, os operários encenando a luta de classes.

A mistura é boa e o final surpreende.

A trilha sonora composta pelas músicas mais populares dos anos 70 na França tem seu apogeu na cena final, em que, dona de todos os holofotes, Catherine Deneuve canta

“C’est beau La Vie”, depois de pregar a volta do matriarcado e das Amazonas.

“Potiche” é uma comédia satírica que consegue tratar de assuntos sérios com humor, colocando a mulher em primeiro plano.

Ozon sabe das coisas. E mostra isso mesmo quando quer brincar.

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