A Dançarina e o Ladrão

“A Dançarina e o Ladrão”- “El Baile de La Victoria”, Espanha 2009

Direção: Fernando Trueba

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O filme começa onde termina. Grandes olhos negros que expressam ansiedade, vasculham a paisagem do vale lá embaixo.

A cordilheira, nevada e rosada ao nascer do sol, brilha atrás do belo rosto da mocinha.

Estamos no Chile, a cidade é Santiago e o ano 1990.

A ditadura Pinochet deixou marcas profundas no país e a mocinha de olhos negros e boca carnuda, a dançarina Victoria Ponce (a chilena Miranda Bodenhofer) é uma dessas vítimas. Pequena ainda, viu seus pais serem sequestrados e depois assassinados. Traumatizada, não fala mais.

Mas o país começa a se recuperar e são anistiados os prisioneiros que não cometeram crimes graves.

Nicolás Vergara Grey, o Nico, vivido por um ator que dispensa apresentações, o argentino Ricardo Darín, é um famoso ladrão arrombador de cofres, que se beneficia com essa inesperada liberdade, depois de cinco anos na prisão. Ele quer reencontrar a mulher e o filho e com eles viver uma vida nova.

Já Ángel Santiago( o argentino Abel Ayala), sai do cárcere sem que saibamos qual delito cometeu.Um obscuro laço o prende ao diretor da prisão, que enrola um cachecol em seu pescoço arredio, enquanto balbucia frases atrapalhadas:

“- Quero que saiba que naquela noite foi um ato de amor…”

Estranho homem que caça moscas para sua cobra de estimação, entronizada no meio da sala, numa caixa com paredes de tela.

Victória, Ángel e Nico vão se encontrar e viver uma história onde se misturam os ingredientes de um drama, uma farsa e uma aventura romântica.

“El Baile de La Victoria”, o titulo original, traduz melhor o espírito do filme. Todos os personagens querem melhorar de vida e viver seus sonhos.

E o clima criado pelo diretor espanhol Fernando Trueba em torno aos personagens é poético e inspirado.

Assim, vemos cenas noturnas, de uma beleza sem artifícios, que mostram uma cavalgada pelas ruas de Santiago até chegar às dunas de areia e o mar.

Como também seguimos atentos os passos da bela dançarina Victoria, a protegida de sua mestra de ballet (a nossa Marcia Haydée), executando com técnica e graça um adágio, com a coreografia inspirada no poema de Gabriela Mistral, “Soneto da Morte”, que ela oferece aos pais desaparecidos.

E nos surpreendemos com Nico, na pele de um Ricardo Darín romântico e afinado cantando, “a capella”,”El Dia que me Quieras” para sua amada, com seus olhos verdes marejados de lágrimas, numa festa que não é para ele.

“A Dançarina e o Ladrão” tem roteiro escrito a três mãos pelo diretor, seu filho Jonas Trueba e o autor da novela que inspirou o filme, o conhecido escritor chileno Antonio Skármeta. É dele outro romance, ”El Cartero de Neruda”, que virou o filme “O Carteiro e o Poeta” de 1994. Skármeta faz, com talento, uma ponta no filme, no papel de um crítico de dança.

Apesar de alguns não gostarem do que chamam de exageros de Fernando Trueba, “A Dançarina e o Ladrão” certamente agradará a quem tem um coração romântico, aberto a histórias que emocionam.

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Shame

“Shame” – Idem, Inglaterra,

Direção: Steve McQueen

 

A tela é uma cama com lençois azuis. Um belo homem está deitado nela, com a mão sobre o ventre. Imóvel por alguns segundos, deixa-se apreciar.

Surge o letreiro negro, “Shame”, sobre o azul dos lençóis.

Ele passa nu pela sala do apartamento quase monástico. Nas estantes de alumínio negro, não há objetos ou fotografias. Livros? Não sabemos… Mais parecem revistas, apostilas. Também não há quadros no apartamento. Grandes janelas de vidro e a vista lá fora denunciam New York.

Ele acessa a secretária eletrônica mas não pára, rumo ao banheiro.

“- Brandon… Atenda… Se está aí… Por favor…”, diz uma voz de mulher. Só nós ouvimos as súplicas que saem da máquina.

Na estação do metrô, vestindo lãs cinzas, de maneira sóbria e impessoal, Brandon está a caminho do escritório.

Este início do dia será repetido várias vezes e, a cada repetição, vamos conhecendo melhor o personagem Brandon Sullivan, na pele de Michael Fassbender, o ator do momento.

Com a mesma desenvoltura mecânica com que acorda e vai de metrô ao trabalho, ele segue um quotidiano que pode escandalizar alguns: masturba-se no banheiro durante o banho, fica horas diante do computador vendo pornografia e fazendo sexo virtual, transa na rua contra um muro. A cama dele é ocupada por várias mulheres, profissionais ou não, que se confundem, porque só pedaços delas são mostrados pela câmara.

No escritório inunda o computador de vírus ao frequentar sites pornográficos e vai muitas vezes ao banheiro, para se masturbar.

Nas ruas da cidade, no metrô ou no trabalho, ele é um tigre faminto à procura de presas.

Só que Brandon, infelizmente, nunca se satisfaz. A cada presa de que se serve, ele precisa de outras mais. Sexo para ele é como uma droga, a qual busca sem parar. Estamos longe do erótico ou do sensual.

Algo em sua mente precisa ser descarregado, para evitar que ele caia em um terreno perigoso. O impulso tirânico de procurar um buraco de carne para se livrar desse algo no outro, o invade sem cerimônia.

Há uma escalada da angústia porque Brandon tem medo de pensar sobre isso.

Réfem desse impulso descontrolado, ele vive uma existência oca, sem laços de qualquer espécie.

Até que, sem convite, aparece alguém em sua vida que o joga na crise da qual Brandon foge.

Sissy, a irmã (a excelente Carey Mulligan), que expõe sua carência, sua infelicidade e raiva voltadas contra si mesma (auto-mutilação e tentativas de suicídio), é o espelho que mostra o que ele tanto oculta de si mesmo: a fragilidade extrema, o medo da perda, os traumas do passado. A vergonha de não ser como os outros…

E ele corre, fatigando-se na noite da cidade, acompanhado pelo piano melancólico de Glenn Gould.

E é de Carey Mulligan o momento-revelação do filme, quando canta afinada e lindamente a canção “New York, New York”, como um longo e triste lamento, arrancando uma lágrima pesada dos olhos do irmão.

“Shame” é o segundo filme de Michael Fassbender, 34 anos, com o diretor inglês Steve McQueen (homônimo do ator americano), que já foi artista plástico e que agora também é cineasta competente. No último festival de Veneza, Fassbender ganhou o prêmio de melhor ator e o filme foi escolhido como o melhor pelos críticos internacionais.

“Shame” é um filme que fala sobre o homem contemporâneo ao mostrar personagens limítrofes, sem moralismo.

Se você não se assusta com a sexualidade, vá ver “Shame” e fazer o que Brandon não consegue: pensar sobre a vida e assumir suas escolhas como gente grande.

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