Uma Relação Delicada

“Uma Relação Delicada”- “Abus de Faiblesse”, França, Alemanha, Bélgica, 2013

Direção: Catherine Breillat

Oferecimento Arezzo

No meio da noite, ela acorda para um pesadelo. Metade de seu corpo morreu…

Mulher forte e cheia de vida, morando sózinha, ela se arrasta até o telefone e pede uma ambulância.

Muito depois, imóvel em sua cama de hospital, ela rememora:

“- Não me lembro de nada, nem do quarto de recuperação. Tive uma grande hemorragia cerebral mas não me lembro de quem me disse isso… Nada vai ser igual de novo.”

Maud (Isabelle Huppert), atriz e diretora de cinema, luta com todas as suas forças mas a recuperação é muito lenta e nunca será total.

Esforça-se para reaprender a rir, equilibrar-se, a fazer as coisas mais simples. O rosto semi-paralisado expressa sofrimento e determinação.

“- É o naufrafágio do Titanic…” diz ela para o amigo que volta de Cannes e espera que ela melhore.

Mas da cama ela passa para a cadeira de rodas e depois para a muleta e sapatos ortopédicos, que ela mesma disfarça, desenhando uma bota de roqueira.

E, numa noite em casa, lá está ele na TV. Ela liga para o amigo e comenta sobre o rapaz que está sendo entrevistado:

“- Ele é legal! Olha esse olhar!”

Na TV, um homem jovem, de cabelo curto e corpo forte, conta:

“- Eu roubei 135 milhões de dólares…Fraudei gente mais rica do que eu. Mas paguei minha dívida. Fiquei preso doze anos.”

Ela exclama:

“- Adoro! Ele não se arrepende! Eu quero ele no meu filme.”

Mas quando Vilko (Kool Shen) vem vê-la e, desenvolto, anda pelo apartamento e sobe nas estantes da biblioteca sem pedir licença, avaliando tudo com olhos de cobiça, um mau pressentimento atinge o espectador. Vai haver encrenca e sofrimento.

A diretora do filme, Catherine Breillat, viveu algo parecido com o que se vê na tela. Teve um AVC e se envolveu com um escroque, Christophe Rocancourt, que ela conseguiu levar aos tribunais. Ele foi condenado à prisão e teve que pagar a ela uma indenização de 578.000 euros, por abuso de fragilidade.

“- Era eu e não era eu”, diz a personagem do filme aos filhos, tentando explicar como se deixou explorar e arruinar, numa cena onde brilha o talento de Isabelle Huppert.

A fragilidade do corpo leva a uma fragilidade da mente? Esta parece ser a hipótese que explicaria o comportamento de Maud, antes uma mulher forte e decidida e, depois do AVC, entregue à sanha de um homem sem escrúpulos.

Ela sente culpa pelo que aconteceu a seu corpo e, inconscientemente, deixa-se castigar? Um masoquismo pode estar jogando o destino dela numa direção sombria.

Mas a diretora que escreveu o livro, que inspirou o filme, não explica a personagem tão parecida com ela e interpretada com devoção pela amiga Isabelle Huppert, uma atriz assustadora, que convence a plateia da verdade da sua Maud.

Um filme único, que fala da fragilidade insuspeita em todos nós.

Ler Mais

Praia do Futuro

“Praia do Futuro” Brasil, 2014

Direção: Karim Ainouz

 

Um clima viril, no visual e na sonoridade, abre “Praia do Futuro”, último filme de Karim Ainouz, 48 anos, que já assinou entre outros, “Abismo Prateado”2011, “Cinema, Aspirinas e Urubús”2005, do qual escreveu o roteiro, “Madame Satã”2002.

Guitarras gritantes combinam-se com o rumor de motos nas dunas, abafando qualquer outro som.

O mar azul, com ondas que rolam arrastando espuma branca, não diz nada a respeito do perigo traiçoeiro que alí reside.

Os motoqueiros tiram suas roupas pesadas e entregam-se à água que convida. Mas logo se debatem, presos à correnteza que puxa para o fundo.

Por mais que o salva-vidas procure e mergulhe, perdeu um homem para o mar.

“O Abraço do Afogado” é o título do primeiro capítulo desse filme, que aparece em amarelo na tela vermelha e que intriga, não responde a todas as nossas perguntas e incomoda.

Wagner Moura é Donato, o “Aquaman” para o irmão menor Ayrton, que o adora. O menino vê o mundo com olhos para super-herois. Ele tem medo de água e se acha o “Speed Racer”.

“- O que deu no cara para vir morrer na praia do Futuro?” pergunta Donato a si mesmo. É o primeiro que ele não consegue salvar.

E, quando dá a notícia para o amigo do motoqueiro afogado, percebe que os olhos do alemão são verdes como o mar.

“- A Praia do Futuro é muito perigosa” diz Donato acompanhando o outro nas buscas do corpo, sem sucesso.

E, sem lutar, Donato entrega-se ao amigo do morto, levado pelo desejo e pela dor do fracasso. Nos braços do alemão Konrad (Clemens Schick), o “Motoqueiro Fantasma”, ele tenta esquecer sua impotência perante a morte, quer refazer o heroi invencível que o irmão criara e fugir do desconforto que a vida causava nele.

Donato muda de cenário, abandona a família e vai refugiar-se em Berlim para poder ser quem ele descobriu que é.

Há uma única frase que dá a pista do que acontece com Donato. Ele se move por medo. E explica:

“- Tem dois tipos de medo. Um que finge que nada é perigoso e outro que sabe que tudo é perigoso nesse mar imenso.”

E, na segunda parte do filme, “Um Heroi Partido ao Meio”, em Berlim, cidade sem mar, cinzenta, subterrânea, ele dança de noite e trabalha num aquário gigantesco durante o dia. Solitário, deixa crescer barba e cabelo. Parece satisfeito, fechado em seu mundo.

“Um Fantasma que Fala Alemão” é a terceira e última parte do filme, dez anos depois que Donato partira de Fortaleza:

“- Sentiu a minha falta? Você esqueceu de mim? Foi?”, fala o irmão de Donato (maravilhoso Jesuíta Barbosa) em alemão, surgido do nada, se atracando com ele. Misturam-se os irmãos, entre socos, abraços e lembranças.

“Praia do Futuro” é um filme de belas imagens, fotografia que convida à contemplação, atores excelentes, poucos diálogos, ótima trilha sonora e nada de explicações psicológicas. Instiga o espectador a fazer esse trabalho, conduzido por gestos e olhares que estão na tela.

Aqui, é necessária uma leitura dos corpos e um abandono de preconceitos, para poder usufruir do que há de sincero e natural na vida dos personagens de “Praia do Futuro”, metáfora para o mundo perigoso em que habitamos.

Ler Mais