Vermelho Russo

“Vermelho Russo”, Brasil, Portugal, Rússia, 2016

Direção: Charly Braun

Oferecimento Arezzo

Viagens sempre alargam nossos horizontes. As iniciáticas, ou seja, aquelas que propõem não só um perambular por lugares que não conhecemos, mas que ensinam a respeito de nós mesmos, são as mais interessantes e material rico para a literatura e o cinema.

Charly Braun, que dirigiu “Além da Estrada – Por El Camino”2010, gosta de palmilhar territórios afetivos. Dessa vez o roteiro foi escrito a quatro mãos e ganhou prêmio no Festival do Rio. O diretor leu um diário de viagem da atriz Martha Nowill, publicado na revista Piauí, quando ela e a amiga e também atriz, Maria Manoella, foram à Rússia para ter aulas de atuação no sistema do russo Constantin Stanislavski (1863-1938).

Além da emoção da viagem para um país distante e desconhecido, algo inesperado esperava pelas amigas e que foi o elemento que mais me atraiu no filme de Charly Braun.

Porque frente às dificuldades que a experiência provocou, o frio, o não entender a língua, a proposta de trabalhar o que poderia melhorar a atuação das duas como atrizes, havia também o que elas não esperavam.

Martha e Manu vão mergulhar profundamente no sentimento complexo que é a amizade e vivenciar rivalidades, antipatias, cansaço.

Já no avião, na ida para Moscou, Martha reza para espantar o medo e estuda frases em russo para uso no cotidiano enquanto Manu dorme. De cara, percebemos que as amigas são pessoas diferentes no modo de viver que escolheram, o que não impede que viajem juntas.

Mas a convivência diária no mesmo quarto, vai evidenciar diferenças marcantes que incomodam as duas e fazem explodir uma raiva frente à impotência que ambas sentem. Porque há nelas uma pressa em acertar, em sentir segurança como atrizes e um receio do profundo mergulho em si mesmas que o professor (Vladimir Poglazov) propõe e que poderia propiciar a naturalidade buscada na interpretação das cenas da peça de Tchecov.

Nesse ponto, a experiência das duas atrizes serve para qualquer tipo de atividade humana que busque aprimorar-se. Porque tudo muda o tempo todo. Nós é que nos enganamos e queremos que tudo seja sempre o mesmo. É preciso ter consciência disso. Parar e notar o que é proposto de novidade pela vida vai fazer a diferença.

O aventurar-se é então o que nos ensinam Martha e Maria Manoella. E o diretor-ator (Esteban Feune de Colombi), que está no lugar de Charly Braun fazendo um “making off” da viagem das duas é aquele que registra os passos dados e que fazem tudo valer a pena. Através dele vemos outros ângulos das atrizes.

A fotografia do filme é bonita e contemporânea e traz a beleza da Rússia para quem não conhece, além de mostrar que as noites de Moscou podem ser quentes e divertidas.

Um filme interessante e original.

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O Cidadão Ilustre

“O Cidadão Ilustre”- “El Ciudadano Ilustre”, Argentina, Espanha, 2016

Direção: Gastón Duprat e Mariano Cohn

“Volver”? Esta pergunta assombra Daniel Mantovani (Oscar Martinez) desde que recebeu uma carta da cidadezinha onde nasceu na Argentina, Salas, de onde saíra aos vinte anos para nunca mais voltar.

Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro da Argentina, ele mora em Barcelona e vive na Europa há 40 anos.

Em seu discurso de agradecimento pelo Nobel, podemos perceber os sentimentos contraditórios que invadem o escritor, que se diz orgulhoso pelo prêmio mas que sabe que este é uma denúncia de que ele agrada a uma elite conservadora, que ele, no fundo, despreza. Ao final, diz que o prêmio é a morte de sua atividade artística, mas que ele está ciente de que o único responsável é ele mesmo. Silêncio na plateia até que tímidos aplausos terminem numa ovação.

Daniel passa a recusar todos os convites de entrevistas, palestras, prêmios, lançamentos e não escreve nenhum romance há já cinco anos, desde que recebeu o Nobel.

Então é entre surpreso e arredio que ele abre uma carta vinda de Salas, que o convida a passar quatro dias na cidadezinha para receber a Medalha de Cidadão Ilustre.

Sem saber direito o porquê, Daniel Mantovani aceita o convite e parte para a Argentina.

A viagem para Salas já começa mal, com um carro velho que vai buscá-lo no aeroporto, sem estepe. Claro que passam a noite na estrada.

E Daniel, à luz de uma pequena fogueira, conta para o motorista uma história de um de seus livros, sobre gêmeos que amavam a mesma mulher.

“- Mas são os gêmeos Remonedo, não? ”pergunta o motorista ao final.

“- É só um conto” responde Daniel irritado.

Dia seguinte aparece o resgate, o prefeito pede desculpas e dá boas vindas, lendo um extenso programa que prepararam para ele.

Tudo parece correr bem, apesar de um Daniel envergonhado ter que chegar no lugar da homenagem em cima do carro de bombeiros, ao som de sirenes ligadas, buzinadas e latidos dos vira-latas.

Mas, em meio aos aplausos, as notas dissonantes começam a aparecer, mostrando um ressentimento velado, uma grande inveja geral e, pior, contas a acertar com quem não considerou seus parentes bem retratados nos livros de Daniel. A agressividade submersa emerge e a brutalidade aparece.

Os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn, em seu terceiro longa, trazem uma história que mistura elementos de farsa, comédia e drama num ponto justo, apoiados no roteiro bem escrito de Andrés Duprat.

O tema da qualidade universal que é melhor percebida quando o escritor fala de sua aldeia, é trabalhado no filme com sucesso.

Oscar Martinez desempenha seu papel com um humor de tintas amargas, mesclado a uma arrogância que algumas vezes cede à generosidade e à empatia. Ganhou o Leão de Prata de melhor ator em Veneza.

O filme recebeu o prêmio Goya e foi indicado pela Argentina ao Oscar.

“O Cidadão Ilustre” é mais um excelente filme argentino, na linha que eles sabem explorar bem ou seja, a zona confusa da complexidade da natureza humana, onde se escondem amores que se transformam em ódios, repúdios travestidos em orgulho e assim por diante. Todo os avessos.

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