Adoráveis Mulheres

“Adoráveis Mulheres” – “Little Women”, Estados Unidos, 2019

Direção: Greta Gerwig

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Se hoje em dia ainda existe um preconceito com a mulher solteira que escolhe seguir uma carreira, não pensa em casar e nem ter filhos, imagine há 150 anos atrás.

Louisa May Alcott, autora americana de “Little Women” queria ser escritora e ganhar dinheiro para ajudar sua família, sua mãe e quatro irmãs. Era uma dessas feministas de vanguarda, que pouca gente levava a sério.

Ela morava numa pensão em Nova York e escrevia furiosamente o dia inteiro. Adorava escrever histórias sobre romances passionais e duelos. Mas ganhava pouco, vendendo para revistas femininas.

Foi o seu editor que a aconselhou a escrever histórias sobre meninas e, meio a contragosto, Louisa se volta para a sua própria vida, suas irmãs e a mãe delas. E assim surgiu “Little Women”, um livro autobiográfico com pequenas alterações da realidade vivida por ela, publicado em 1868.

O livro foi um sucesso de venda e até hoje já teve quatro versões para o cinema, o que já evidencia o charme e o frescor do assunto que o público adorou.

A última delas é a de Greta Gerwig, que conhecemos de “Frances Ha”, filme em que ela atuou e escreveu o roteiro. E o triplo Oscar veio no ano passado com o filme “Lady Bird”, melhor filme, melhor diretora e melhor roteiro original.

O filme atual é delicioso e alia graça com a beleza. Uma coisa de irmãs que se amam e mesmo quando estão com raiva, tudo passa logo e o amor vence. Há uma bondade e uma ingenuidade contagiantes naquela casa.

Saoirse Ronan é Jo, a personagem principal, alterego da autora. Criativa e com um espírito de justiça e solidariedade marcantes, ela vai se envolver com os problemas da família, tentando resolver tudo da melhor maneira. Meg (Emma Watson) é a mais velha que é romântica e quer ser atriz. A mais tímida é Beth (Eliza Scanlen) que coloca toda sua paixão no piano. E Amy (Florence Pugh) é a mais vaidosa e sonha em ser uma grande pintora.

Há calor humano nessas meninas que fazem a casa da Sra March (Laura Dern) ser um refúgio ao mundo da guerra e tristezas lá fora. O pai (Bob Odenkirk), que está nos campos de batalha, manda cartas que fazem todas chorarem de saudades.

O ritmo do filme é acelerado seguindo as conversas das irmãs, quase sempre falando todas ao mesmo tempo e a câmera descansa pouco nos preciosos detalhes da produção de arte, figurinos e mesmo nas cenas ao ar livre, sempre ativas. Exceção marcante é uma tarde na praia prateada que o vento faz ficar suspensa na neblina.

Indo e voltando no tempo para contar as histórias dessas quatro garotas encantadoras, a diretora mantém esse ritmo que nos envolve e nos coloca muito próximas delas. Tanto nas alegrias quanto nas tristezas.

O elenco é muito bem escolhido e conta também com a tia March (Meryl Streep), a rica da família, o galante vizinho Laurie (Timothée Chalamet), melhor amigo de Jo e o professor alemão Friedrich Bhaer (o belo Louis Garrel) que aparece para salvar uma das irmãs da solteirice.

O filme é mesmo adorável mas eu gosto mais do título “Mulherzinhas” que é como o pai delas chamava com carinho as cinco mulheres de sua vida.

Uma graça.

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O Farol

“O Farol” – “The Lighthouse”, Estados Unidos, Canadá 2019

Direção: Robert Eggers

Há muitas maneiras de viver no mundo. A mais trágica delas é quando há uma impossibilidade de ver e aceitar a realidade que, por pior que seja, é o que temos e onde podemos mudar alguma coisa, por mínima que seja.

Nessas situações em que a realidade é negada e cria-se um outro mundo para se viver, o resultado é sempre um pesadelo. Porque mesmo quando a realidade ameaça e é substituída pela mente doente, não há como negá-la inteiramente. Ela vai se infiltrando e traz o medo com ela porque nesses casos a realidade é sentida como ameaçadora. Há algo que a pessoa não aceita de jeito nenhum mas não consegue se livrar de sua aparição. Quanto mais ela foge, mais tem que correr dessa realidade que a persegue.

“O Farol” espelha uma situação assim e pode ser visto como um filme de terror.

Numa leitura mais superficial, dois homens, um velho e um jovem estão num farol no meio do mar, longe do mundo. Precisam trabalhar arduamente para sua sobrevivência. É a cisterna suja, são os detritos que mancham a pedra do farol. Mesmo dentro da casa há vestígios de sujeira por mais que o jovem esfregue o chão. O velho obriga o jovem a uma insana tarefa de limpeza impossível, já que o próprio velho tem hábitos sujos.

Tudo isso é mostrado numa tela quase quadrada, em preto e branco e com uma trilha sonora que empresta vida ao farol e à natureza em torno. Ouvem-se sons cavos, lamentos, o uivar do vento, o grito raivoso das gaivotas, o estrépito das ondas, o rugir da tempestade. Para não falar da buzina do farol e do incessante estrépito das máquinas.

O farol mostra-se inabalável em toda sua altura e trabalha para si mesmo porque não se vê navio naquele mar. Uma escada em caracol leva ao alto, à luz. Mas só o velho tem acesso a ela. O jovem sente-se atraído pelo lugar que lhe é negado. Isso aumenta sua dor de humilhação constante.

E o que vemos, desde o início é a aparente tranquilidade do jovem ir desaparecendo. A sereiazinha de cerâmica que ele encontra em seu colchão, guardada no peito, é uma primeira alusão à mente que começa a alucinar. Ou é tudo um grande delírio desde o começo? A construção de uma mente atormentada que nem naquele fim de mundo consegue ter paz?

O que vemos é uma loucura crescente. Um ator que mostra todo o seu talento nisso (Robert Pattinson) e o outro que parece ter prazer em atormentar o novato (o ótimo Williem Dafoe), fazendo de sua vida um inferno. Veio com o jovem ou não passa de uma projeção de seu torturador interno?

Não vou contar mais porque o espectador tem direito a ver tudo, principalmente o final, que tem mais de sofrimento indizível que de terror.

“O Farol” é uma imersão numa vivência extraordinária do que pode a mente humana quando perde o prumo, levada pela culpa, resultado da falsa interpretação dos acontecimentos.

Muito bem dirigido por Robert Eggers (“A Bruxa”) e magnificamente interpretado, eu o vi como uma encenação da loucura. A presença do terror dentro da mente de uma pessoa é bem mais assustadora do que os monstros habituais.

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