Ninguém Deseja a Noite

“Ninguém Deseja a Noite”- “Nadie Quiere la Noche”, Espanha, França, Bélgica, 2016

Direção: Isabel Coixet

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Juliette Binoche, 52 anos, talentosa e carismática, é daquelas atrizes que gostam de escolher figuras femininas fortes, ou que impressionem por algo dramático, para interpretá-las no cinema.

Isabel Coixet, catalã, 56 anos, é uma das mais importantes diretoras de cinema da Espanha. Foi ela que apresentou Binoche a Josephine Peary (1863-1955), uma dama da alta burguesia de Washington, casada com o famoso explorador do Ártico, Robert Peary (1856- 1920).

“Ninguém Deseja a Noite” inspira-se na figura da mulher do homem que disse ter chegado em primeiro lugar ao Polo Norte em 1909, fato depois contestado por Frederick Cook que afirmava ter chegado antes, em 1908. Até hoje há controvérsias. Mas parece que Peary foi realmente o primeiro a chegar ao Polo Norte.

Josephine acompanhou o marido em seis de suas expedições e foi a primeira mulher a fazer isso. Era chamada de a ”Primeira Dama” do Ártico. Deu a luz à sua filha, que nasceu em plena paisagem de gelo, muito próxima ao Polo Norte. A bebê era chamada de “Snow Baby – O bebê da Neve” e serviu de tema para um livro escrito por sua mãe em 1901, com esse título. Além desse, Josephine escreveu mais dois livros: “My Artic Journal”1893 e “Children of the North”em 1903.

O filme de Isabel Coixet inspirou-se nessa figura de mulher mas se valeu de uma liberdade poética. Transformou a esposa do explorador em companheira de 18 semanas de inverno polar da innuit Allaka (Rinko Kikuchi), que Josephine não sabia, mas era a amante de seu marido, de quem esperava um filho.

Vemos na tela uma mudança radical de postura em Josephine Peary. De uma mulher segura de si, arrogante mesmo, que pensa ter força suficiente para enfrentar o inverno de seis meses sem sol e propõe-se a esperar o marido sozinha em um acampamento precário até sua volta do Polo norte, ela vira outra pessoa.

No início, vestida de veludo vermelho, gola de raposa prateada, chapéu de astracã preto e coberta de peles, lá vai Josephine em seu trenó puxado por cães, com o guia Bram (Gabriel Byrne). Em outros dois trenós seguiam esquimós, um deles a moça Allaka.

A natureza selvagem e de extremos que Josephine pensa que vai conseguir enfrentar, mostra-se muito mais terrível do que ela imaginava. A mocinha esquimó, no começo desprezada pela americana, vai desempenhar um papel importante na convivência das duas, que marca uma humanização de Josephine, que vai precisar da simplicidade de Allaka e de seu coração solidário. Mais que tudo, vai precisar dos conhecimentos de sobrevivência que Allaka conhece.

Imagens belíssimas da paisagem desértica e escura do inverno polar mostram a pequenez do ser humano naquele cenário sem luz, só sombras. Tanto fora quanto dentro da pequena cabana ou do iglú de Allaka, o clima é de claustrofobia, já que a natureza as capturou numa armadilha, impedindo que possam sair de lá.

Só a solidariedade pode salvá-las e, acreditando estar perto da morte, Josephine descobre a própria humanidade e a de Allaka, igualadas no sofrimento e medo.

O filme é difícil de ver por essa angústia de morte próxima num deserto gelado. Mas vale a pena pela atuação magnífica de Binoche e de Kikuchi e pela beleza terrível de uma natureza que raros humanos conhecem. Algo assustador mas também de uma tal grandiosidade que fascina.

Um filme raro.

 

 

Sangue do Meu Sangue

“Sangue do Meu Sangue”- “Sangre del Mio Sangre”, Itália, França, Suiça, 2015

Direção: Marco Bellocchio

Na pequena Bobbio, no século XVII, o convento de Santa Clara, no alto da colina, ostenta uma bela ponte de pedra sobre o rio, que é atravessada por um visitante. É Federico Mai (Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor), irmão gêmeo de Fabrizio Mai, um religioso morto recentemente.

Ele é um militar e é recebido pelo frei encarregado pela Inquisição de resolver o caso. Fabrizio teria se suicidado por amor à freira Benedetta (a bela Lydia Liberman) de quem era confessor. Se isso fosse verdade, não poderia ser enterrado em campo santo. Aos suicidas era reservado o cemitério dos assassinos, ladrões e animais. Seria a desgraça de sua família aristocrata.

Frei Cacciapuoti (Fausto Russo Alesi) espera que a freira confesse um pacto com o demônio. Fabrizio teria sido enfeitiçado por ela para que se matasse e fosse condenado ao inferno.

Naquele lugar bucólico, onde roseiras se misturam a pessegueiros e heras, o jardim é também cemitério e lá a bela Benedetta sofre o teste da água, o das lágrimas e o do fogo. Federico está envolvido no clima de sensualidade que paira sobre aquele lugar ambíguo, no qual os gritos da freira são abafados pelo canto das noviças. Ele parece atraído por aquela que veio condenar.

Houve uma história verdadeira na qual Marco Bellocchio se inspirou: a monja de Monza, Marianna de Leyva, que foi emparedada em seu convento por anos.

Mas há também um humor erótico, nessa primeira parte do filme, na relação de Federico Mai com as aparentemente piedosas irmãs Perletti (Alba Rohrwacher e Federica Fracassi).

O mesmo convento, agora no século XXI, é visitado por um agente do governo, Federico Mai (o mesmo ator que interpretou o militar), que leva um bilionário russo (Ivan Franek) para visitar o convento, transformado em prisão e aparentemente abandonado. O russo quer transformá-lo em um hotel de luxo.

Mas lá vive escondido do mundo e da mulher, o Conde Basta (Roberto Herlitzka, ótimo), que dizem ser um vampiro e que só sai à noite.

Cercado de mistério parece que o Conde manda na cidade e pertence a uma Fundação. Máfia?

Nessa segunda parte do filme, Bellocchio traz à tona os “pecados”da gente de Bobbio que não teme mais a censura e a condenação da religião mas o fisco e a segurança social. Muitos recebem pensões indevidas e são cegos que enxergam, vivos dados como mortos e mortos dados como vivos.

Marco Bellocchio, que sempre passa os verões em Bobbio, sua cidade natal, faz uma crítica aos tempos atuais que serve para os italianos mas também para grande parte da humanidade.

A única coisa bela ainda é a mulher e a jovem Elena (Elena Bellocchio, também parente do diretor) encanta até o velho Conde.

“Sangue do meu Sangue”ganhou o Prêmio da Crítica no Festival de Veneza 2015.