Florence: quem é essa mulher?

“Florence: quem é essa mulher?”- “Florence Foster Jenkins”, Inglaterra, 2016

Direção: Stephen Frears

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Uma americana rica e carente, completamente iludida quanto a si própria, é tema de dois filmes que estão em cartaz.

O francês “Marguerite”, dirigido por Xavier Gianoli, 44 anos e com a magnífica atriz Catherina Frot, que ganhou o César, o Oscar francês, por esse papel, é anterior ao de Stephen Frears, 75 anos, consagrado diretor inglês.

No primeiro, a história se passa nos “anos loucos” em Paris, logo depois da Primeira Guerra. A intenção é menos biografar do que inspirar-se na história para fazer uma crítica ao poder do dinheiro e à hipocrisia dos que bajulavam e viviam dos favores da cantora desafinada, que se considerava uma soprano coloratura. Há uma melancolia fatal na Marguerite que canta para não enlouquecer.

Já o filme de Frears, que trabalhou também em Hollywood (“Ligações Perigosas”1988) e dirigiu sucessos como “A Rainha”2006 e “Philomena” 2013, é a biografia de Florence Foster Jenkins (1868-1944), a americana rica e patética, interpretada pela também magnífica Meryl Streep, na sua provável vigésima indicação ao Oscar.

Numa produção cara, com esmerada reprodução dos anos 40 em Nova York, apesar de filmado na Inglaterra, a melancolia aparece apenas em uma cena mas os risos exagerados, seguidos de aplausos idem, dão o tom de comédia procurado pelo diretor.

Meryl Streep, toda acolchoada para parecer gorda, veste modelos impagáveis, de Consolata Boyle, ornados com pencas de detalhes espalhafatosos como plumas, chapéus extravagantes, coroas e tiaras, broches enormes, colares de ouro, de pedras e pérolas, muitas pérolas, entremeadas de cristais.

A sobriedade excêntrica de Marguerite, baronesa francesa de título comprado, não é motivo de riso mas a americana Florence de Meryl Streep é uma piada visual pronta.

Quando esta última desafina, quem produz os grunhidos e as notas falsas é a própria Meryl Streep, que sabe cantar muito bem e aproveita desse seu dom para adoçar o final do seu filme.

Mas tem uma coisa em “Florence Foster Jenkins” que não tem em “Marguerite”: Mr St. Clair Bayfield. Hugh Grant, com aquele sotaque inglês irresistível, no melhor papel de sua vida, faz um filho bastardo de um lorde que não tem lugar na Inglaterra e vem tentar ser ator na América. Medíocre na recitação de versos de Shakespeare, ele é o suprasumo de marido para Florence. Além de pagar muito bem os aplausos e as críticas favoráveis, com o dinheiro dela, ele a protege, mima de todos os jeitos, dá conselhos nem sempre acatados, com um afeto que comove. Hugh Grant interpreta o mais amoroso dos maridos com perfeição. Ele convence. E está mais charmoso do que nunca.

Simon Helberg, que faz com talento o pianista de Florence, tem uma mímica facial que dispensa os comentários que passam por sua cabeça a respeito dos dotes da patroa e, envergonhado a princípio, vê-se irremediavelmente conquistado pela ingenuidade, generosidade e bom coração da dama em questão.

Tanto a fábula francesa como a comédia inglesa apesar do mesmo tema, são bem diferentes e merecem ser vistos.

E, definitivamente, tornaram Florence Foster Jenkins, a pior cantora lírica do mundo, muito conhecida também pelas plateias de cinema, já que na Broadway e em West End ela já foi personagem de musical de sucesso.

 

Julieta

“Julieta”- Idem, Espanha, 2016

Direção: Pedro Almodóvar

A visão de um tecido vermelho que enche a tela, com suas dobras que pulsam, lembra o íntimo de um corpo feminino. Imagem intrigante.

Aos poucos, a câmara se afasta e nós, que sempre estamos à procura de entender o que vemos, descobrimos que é um vestido cobrindo um corpo de mulher. Debaixo do vermelho, que segredos se escondem naquele coração?

De pergunta em pergunta, Almodóvar vai construindo seu vigésimo filme em torno a Julieta (a belíssima Adriana Ugarte na juventude e Emma Suárez, quando mais velha, ambas talentosas).

Aos 50 anos, elegante, cabelo louro curto, ela se prepara para partir de Madrid com Lorenzo (o argentino Dario Grandinetti de “Fale com Ela”).

“- Não consigo decidir que livros levar…” diz ela.

Ele responde docemente que Portugal não é um deserto e lá existem livrarias.

“- Me recuso a comprar livros que já li.” Alusão inconsciente a um passado do qual não quer se lembrar?

Ele a beija quando ela sai para um passeio e diz:

“- Obrigado por não me deixar envelhecer sozinho.”

Na rua, um encontro por acaso. Esbarra numa mulher jovem.

“- Julieta! Encontrei com sua filha. Mas você está igual! Ela já tem três filhos!”

A moça está apressada e um pouco estranha.

“- Você tem filhos ?”

“- Não. Nem me casei.”

“- E o que mais te falou Antía?”

“- Nada… Estava de cara lavada, mais magra, muito bonita.”

“- Onde você mora?”

Julieta se agarra a essas poucas palavras, quer saber mais mas a moça se vai com amigos que a esperam.

E o acaso muda tudo na vida de Julieta. Começamos a ver um pouco mais por debaixo dos panos. Ela tem uma filha que não vê há muito tempo. É avó e não sabia.

“- Mas você está agindo como uma louca”, exclama Lorenzo quando Julieta diz que não vai mais para Portugal com ele.

“- Preciso ficar em Madrid, sozinha.”

“- Sempre soube que havia um segredo em sua vida mas respeitei isso…”

“- Gostaria que continuasse respeitando”, responde uma Julieta estranhamente fechada.

Quando ele se vai, ela procura algo no cesto de lixo. Recupera pedaços de uma foto rasgada. É a filha, claro.

Senta-se, abre um caderno e começa a escrever para Antía. Mas mais parece que é para si mesma que escreve, querendo compreender o que foi que aconteceu.

O passado sepultado ressurge vivo, em cores fortes e tudo recomeça. Num grande “flashback”, Julieta volta para aquela noite no trem quando um homem se matou e outro fez uma filha.

Baseado nos contos curtos “Chance”, “Soon” e “Silence” do livro “A Fugitiva” da canadense Alice Munro, prêmio Nobel de Literatura em 2013, Almodóvar faz seu filme mais comovente, no qual o humor quase não tem lugar. Só aparece de passagem e negro, com Rossy de Palma, atriz fetiche do diretor.

Para alguns um filme menor, para outros uma nova elaboração, “Julieta” é sobre segredos íntimos. Sem perder seu toque, aqui melodramático, Pedro Almodóvar disse da escritora que o inspirou para fazer “Julieta”:

“- Quando termino de ler Alice Munro, parece que sei menos que antes.”

Traduzindo para “Julieta”, não será que os segredos dela, envolvendo perdas, traições, culpa e enganos, não devem, nem podem ser inteiramente desvendados? Entre filha e mãe existe sempre uma ligação sem palavras que só será completa quando ela se tornar mãe também. Isso era o que faltava para Julieta?