Deixa ela entrar

Let the right one in

Direção: Tomas Alfredson

Oferecimento Arezzo

Prepare-se para ver algo insólito: uma história sobre um menino e uma vampira.

Mas nada de cruzes, alho, capas pretas e muito menos caninos afiados

em ‘’close’’.

Há cenas de sangue. Mas elas não são gratuitas.

Em ‘’’Deixa ela entrar’’clichês do gênero horror e vampiro, explorados há séculos

pela literatura e o cinema, ganham uma leitura nova, plena de lirismo e empatia com

as personagens.

Discreto, quase que com uma camara imóvel, o diretor sueco Tomas Alfredson

aproxima-se de um cenário frio: a neve cobre o ‘’playground’’ de um prédio de

classe média.

Um garoto muito louro, com feições de menina, esfaqueia o ar:’’Berra!Berra como

porco!’’ grita, encenando uma força e coragem que não possui.

Encarapitada em um brinquedo alto, ela observa tudo.

‘’Você é um menino ou uma menina?’’ pergunta Oskar a essa figura estranha,

desgrenhada, de mangas curtas no frio da noite.

‘’Me chamo Eli’’.

‘’E eu Oskar. Quantos anos você tem? Eu tenho doze.’’

‘’Eu também.’’

‘’Qual o dia do seu aniversário?’’Oskar está curioso.

‘’Tenho doze anos há tanto tempo que me esqueci do dia do meu aniversário…’’

responde Eli, a sem lugar ao sol.

E é uma história de amizade amorosa que vai ser contada. O menino que tinha medo

torna-se homem e a criança que cheirava mal, floresce mulher.

O confortável maniqueísmo da luta do bem contra o mal é polemizado com sutileza

nesse filme aparentemente simples. Eli,a vampira, não é perversa, não mata por prazer.

E Oskar é chamado a pensar sobre empatia:

’’Ponha-se no meu lugar só um

pouquinho’’pede Eli, para quem o sangue é vital.

Oskar, o menino tímido que não conseguia enfrentar os outros meninos no colégio,

reluta também em aceitar essa estranha criatura, gelada como a neve:

’’Você está morta?’’pergunta Oskar.

‘’Claro que não. Eu sou assim’’retruca Eli.

E, como Oskar, somos conquistados aos poucos pela emoção sutil que emana desse filme

que fala sobre a aceitação do outro, a conquista da confiança e a exigência de  coragem

para enfrentar o destino de cada um.

Uma jóia rara.

Anticristo

“Anticristo”

Direção: Lars Von Trier

Não é um filme para multidões. Porque, como tudo que sai da câmara de Lars Von Trier, tem que ser decodificado. Nesse sentido, Anticristo participa da natureza da arte conceitual contemporânea que não é para ingênuos.

Por outro lado, há uma comunicação intuitiva com a platéia, que se incomoda. Porque o filme trata, através de imagens concretas, de realidades psicológicas comuns a todos nós.

As cenas iniciais em preto e branco são oníricas, poéticas, perfeitas.Mais parecem pertencer ao mundo do faz-de-conta da propaganda.

Charlotte Gainsburg, que ganhou o premio de melhor atriz em Cannes por esse filme e Willem Dafoe são o casal que transa enquanto o filho pequeno abre a janela de seu quarto e se joga, embalado pela neve que cai, com uma expressão de prazer no rostinho.

E é aí que entram em cena os personagens enigmáticos do filme, os três mendigos: Dor, Luto e Destruição. Como bibelots colocados na mesa diante da janela que permite o vôo da criança para a morte, antecipam o horror que vai acontecer.

A mãe é internada e tratada com remédios e o pai, que é psicólogo, interrompe o tratamento e a leva para a cabana deles na floresta.

Lá, tenta lidar com a depressão da mulher através de técnicas de psicologia comportamental. Pagará caro por sua arrogância porque o caos vai surgir nessa floresta filmada em tons terrosos e escuros.

Freud morreu? O inconsciente não existe mais?

Pois é no Éden (como eles chamam essa floresta) que vão aparecer para o casal os moradores do mundo interno: os demônios que nos assombram por dentro.

A mãe desenvolveu um luto patológico, uma melancolia que tem suas raízes na psicose encoberta com a qual ela convive.

O marido ignora tudo isso.

A tese sobre a caça às bruxas na Idade Média que ela tentou escrever nessa mesma cabana no verão passado, acompanhada pelo bebê, deflagrou nela uma identificação com o mal. O que era para ser criticado com a razão torna-se possessão .As imagens de tortura que ela cola nas paredes da cabana a impressionam e fazem surgir uma culpa persecutória com raízes em suas fantasias infantis.

Melanie Klein, psicanalista que fundou a psicanálise infantil, descreveu essas fantasias nas quais a mãe-má é contraponto para a mãe boa. Na ausência dessa mãe-fada ocorrem as fantasias sádicas sobre ataques com dentes e garras à mãe-bruxa. E se enraíza em nós a culpa persecutória.

É uma descida aos infernos que acompanhamos com terror, como se fossemos crianças ouvindo os contos dos irmãos Grimm,antes de dormir com pesadelos. Os bichos-fêmea que contracenam com o casal parecem saídos das ilustrações de livros infantis do século XIX.

“É o caos”, informa a raposa que devora as próprias entranhas.

A culpa projetada no marido transforma a mulher em torturadora e assassina. As cenas de mutilação são terríveis e a morte é o destino da mulher-bruxa.

A cena final lembra o mito da expulsão do Paraiso: o homem, amparado em muletas, abandona o Éden onde ele era uma criança ingênua. E parte, ferido, para a realidade.

Acompanhado por uma multidão de mulheres silenciosas (as bruxas resgatadas de suas fogueiras?) ele se prepara para refletir sobre a vida, o amor e o ódio.