Leviatã – 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

“Leviatã”- “Leviathan”, Rússia,2014 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Direção: Andrei Zvyagintsev

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O mar quebra suas ondas brancas no rochedo negro. Carcaças de barcos, um cemitério de pequenas embarcações e restos de um pier em escombros, refletem-se no espelho das águas.

Uma paisagem morta. Casas humildes espalham-se numa península.

No lusco-fusco de um dia que se finda, um carro na poeira traz um amigo de Moscou para Kolya (Alexei Sobryakov), que vive nessa região gelada com Lylia, sua bela mulher (Elena Lyadova, esplêndida) e Roma (Sergey Pokhadaev), adolescente, filho do primeiro casamento dele, que trata mal sua madrasta.

Os amigos se abraçam com força. O advogado Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), bonitão e caloroso, veio ajudar no processo em que o prefeito da cidade, Vadim (Roman Madyanov, ótimo), quer expropriar as terras de Kolya, berço de seus antepassados.

Com o retrato de Putin na parede e bandeiras da Rússia no seu acanhado escritório, o prefeito se reúne com seus asseclas e planeja o bote. Aliado ao que de mais abjeto existe na cidade, com apoio de cúmplices do governo, dará um outro destino à terra que Kolya ama.

Mal sabe o russo louro e confiante, que sua vida poderá também ser destruída.

O progresso parece trazer para os russos mais do que televisões de plasma, celulares e carros blindados. Corrupção, ética de bandidos, saques perpetrados por uma justiça vendida, desfilam na tela.

Litros de vodca tentam anestesiar as dores da alma russa doente e desviada de seu caminho. Nem a religião consola, presa da mesma crise moral.

O menino chorando desolado na praia, frente aos ossos do esqueleto de uma baleia, branqueados ao sol, parece apontar para uma desesperança no futuro.

E, ao som da pungente sinfonia “Akhnaten” de Philip Glass, uma civilização milenar se esfacela.

O filme de Andrei Zvyagintsev ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes 2014.

O diretor chamou seu filme “Leviatã”. O que nos remete à mitologia judaica, que dá esse nome a um monstro aquático que seria o demônio representante do pecado da inveja.

E o nome do filme também parece combinar com a acepção do cientista político Thomas Hobbes (1588-1679), que chamou com esse nome, um governo central autoritário que seria necessário na eterna luta de todos contra todos.

Mas quando as coisas chegam a esse ponto, todos serão vítimas, mais dia, menos dia. É o alerta que o filme propõe?

 

Winter Sleep – 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

“Winter Sleep” – Idem, Turquia, Alemanha, França, 2014 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Direção: Nuri Bilge Ceylan

 

Uma paisagem de grandes pedras, neve e lama. Na Anatólia, região central da Turquia, os homens habitam em cavernas nas rochas, há milênios. Dentro delas, hibernam durante o inverno rigoroso.

Um jeep laranja vai no seu caminho, com dois homens dentro. De repente, uma pedra atinge o vidro da janela do passageiro. O motorista corre atrás de um garoto que foge. Por que aquele menino fez isso?

A partir daí, presenciamos a um demorado desmoronar das certezas de Aydin (Haluk Bilginer, excelente),dono de um hotel na região, homem rico, herdeiro de propriedades do pai.

Aquele menino pertence a uma família que não consegue pagar o aluguel da casa alugada. São inquilinos de Aydin e submissos a ele, mas numa postura de fachada. Por trás há ódio.

Mas o ex-ator e escritor de colunas num jornalzinho local parece não se interessar pelo vil metal. Deixa seus negócios, basicamente aluguéis e o hotel, nas mãos do motorista, Hydaiat, enquanto se refugia, com seu computador, em seu estúdio aconchegante.

Ele pretende, um dia, escrever a história do teatro turco. Diz que será um livro importante, já que conhece bem o assunto.

Mas essa pose de “grand seigneur”que Aydin mantém, com discursos longos nas conversas com a irmã Necla (Demet Akbaj) ou com a esposa Nihal (Melisa Sozen), muito mais jovem que ele, fica cada vez difícil de ser mantida.

Acusa a irmã, recém divorciada e a esposa, de preguiça e de viver às custas dele. Através da disfarçada desvalorização dos outros, Aydin consegue manter sua auto-estima num nível alto.

Para ele, só vale o que ele pensa sobre o mundo. Arrogante, pede a opinião dos outros apenas para reduzir tudo que a outra pessoa fala em seu oposto. É distante e frio, com aparência de ser magnânimo e generoso.

A caçada de um cavalo selvagem, que se joga na água lamacenta do rio para lutar por sua liberdade, abala  Aydin, que começa lentamente a dar-se conta de sua crueldade. Não apenas com as outras pessoas com quem convive mas principalmente consigo mesmo. Ainda frouxamente, algo dentro dele quer também libertar-se do jugo desse tirano que domina a personalidade dele.

É com interesse que seguimos os lances dessa luta interna.

O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes 2014 e o prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema, o FIPRESCI. Aliás, o diretor turco Nuri Bilge Ceylan de 55 anos é premiadíssimo em Cannes. Além desses dois prêmios, já ganhou o de melhor diretor em 2008, por “Three Monkeys”, duas vêzes o Grande Prêmio do Júri por “Distant”2002 e por “Era Uma Vez na Anatólia”2011 e mais três FIPRESCI por “Small Town”1997, “Clouds of May” 2000 e “Climates”2002.

O diretor, e co-roteirista com sua mulher Ebru Ceylan, consegue criar um clima que vai se adensando e que, como gelo fino, ameaça o lugar e a pose imperial de Aydin.

“Winter Sleep” alude a um longo período de hibernação da alma de Aydin, que, frente a um fato que o atinge mais fortemente que os estilhaços do vidro daquela janela, vai despertar para a vida.

Tarde demais?