Amor sem escalas

"Amor sem escalas" - "Up in the air", Estados Unidos, 2009

Direção: Jason Reitman

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O título original fala mais sobre o filme do que essa tradução boba que fizeram no Brasil.
Porque o bonitão e sexy George Clooney é Ryan Bingham, alguém que vive no ar, em aviões cruzando os Estados Unidos. Quando em terra, ocupa algo parecido com um quarto de hotel espartano e não ficamos sabendo nada sobre sua vida amorosa, nem seu passado.
É um sujeito competente no que escolheu fazer na vida: demitir de seu trabalho pessoas que não conhece. Ele é o empregado ideal, de uma empresa terceirizada nessa função que as próprias empresas não conseguem cumprir, tantos são os que tem que ser demitidos. Evitam assim enfrentar pessoalmente lágrimas e derramamento de sangue.
Pensem nos Estados Unidos no ano passado, quando levas e levas de bons trabalhadores americanos eram postos na rua por causa da temida crise mundial que começou lá.
George Clooney (que está muito convincente no papel de Ryan Bingham) vive sempre “Up in the air”, algo como “nas nuvens”, para desempenhar seu antipático ofício. E adora isso porque chega a dizer frases como essas abaixo durante o filme:
“Conhecer-me é voar comigo.”
“Tudo que você odeia quando você voa, para mim são doces lembretes de que eu estou em casa.”
“No ano passado, passei 43 dias infelizes em casa, os outros maravilhosos 322 nos aviões…”
Além de usar uma retórica vazia mas eficiente, já que ao demitido não resta outra coisa senão lamentar-se, o frio Ryan ainda estuda a ficha da pessoa e ironicamente a incentiva a realizar sonhos, agora que já não há outra alternativa:
“Vi que você fez o curso de culinária francesa. Por que não se dedica a isso agora? Para você será um renascimento. Realize seus sonhos e conquiste o orgulho de seus filhos.”
Além de demitir pessoas, Ryan dá palestras motivacionais em vários lugares por onde passa. Seu tema é “esvazie a mochila”:
“O que vocês levam na mochila às costas? Quero que sintam o peso dela nos seus ombros. Está ficando pesada: coisas, relacionamentos, seu carro, sua casa, seu apartamento… Agora tentem andar. É difícil, né? Eu digo a vocês: mover-se é viver. Vocês deveriam deixar tudo isso se queimar. É muito estimulante não ter nada. Relacionamentos afetivos, então, são as coisas mais pesadas na vida. Vocês não precisam carregar todo esse peso. Seres humanos não são cisnes que são monógamos. Somos tubarões. Não podemos parar.”
Mas é claro que a vida dá voltas. Ryan, tão bem defendido por suas convicções (ou pelo menos é isso que ele pensa), vai se dar mal.
Quando, inevitavelmente, o apelo amoroso comparecer, ele não vai saber lidar com isso.
Encontra Alex (Vera Farmiga) em um bar de hotel e não reconhece os sinais de que suas defesas estão desabando.
Sua companheira de trabalho, a jovem estagiária Natalie Keener (Anna Kendrick), que descobre um outro método de demitir pessoas (conversas por internet), fica chocada com o que ouve em seus papos com Ryan. Ela, que sofre por um namoro que se rompeu (via internet), faz o melhor diagnóstico sobre o personagem de George Clooney:
“Você construiu para si mesmo um casulo de auto-exílio.”
A moral desse filme me fez lembrar uma conhecida fábula de Esopo: “A raposa e as uvas”.
Diz essa fábula que uma faminta raposa, passando por uma videira, reparou em um cacho de suculentas uvas. Mas, por mais que pulasse e se esforçasse, não conseguiu alcançá-las. Exausta e desanimada, olhou novamente as tão desejadas uvas e disse: “Estão verdes, vão me fazer passar mal…”
Acho que parece ser esta a defesa principal de Ryan para lidar com seu medo de envolver-se com a vida ou seja, de sofrer e errar como todo mundo. Enfrentar frustrações e aprender com elas não é coisa fácil. Mas é a única maneira de viver.

Nine

"Nine", Estados Unidos, 2009

Direção: Rob Marshall

Nem todo mundo aqui no Brasil gosta de musical. Não existe entre nós essa tradição americana, mas alguns têm na memória um musical de Hollywood.
Na minha figuram com destaque “West Side Story” – Amor sublime amor (1961), dirigido por Jerome Robbins (um ícone da dança americana) e “All that jazz” – O show deve continuar (1979), dirigido e coreografado pelo extraordinário Bob Fosse. E claro que também “A noviça rebelde” (1965), “My fair lady” (1963), e “Moulin Rouge” (2001) entre muitos outros.
Até Woody Allen se curvou com graça a essa mania americana com o ótimo “Everybody says I Love You” – Todos dizem eu te amo (1996). Nesse filme, atores que nunca cantaram na tela desfilam sucessos que todos conhecemos. Mas esse é um musical diferente. Quase que para dizer que todos nós podemos cantar quando se trata de amor.
Já o problema com os musicais da Broadway é que quase todos sabem como é difícil fazer algo que parece fácil só quando é bem feito.
Que dirá unir corpo, voz e alma numa atuação que cause admiração?
Pois é disso que se trata “Nine”. Atores que normalmente só interpretam papéis, aqui cantam e dançam.
O diretor Rob Marshall, o mesmo de “Chicago” (2002), que ganhou seis estatuetas do Oscar, segue o seu destino.
Dessa vez resolveu levar para a telona um musical da Broadway de 1982, premiado com cinco Tony Awards (o Oscar da Broadway), considerado o melhor musical do ano com Raul Julia no papel principal. Aliás houve uma nova encenação em 2003 com Antonio Banderas.
Rob Marshall obteve quatro indicações para o Oscar de 2010, se bem que nenhum nas categorias principais: atriz coadjuvante, direção de arte, figurino e canção original.
Ora, não é pouca coisa reunir o elenco brilhante que ele conseguiu: Daniel Day-Lewis, Nicole Kidman, Penélope Cruz, Marion Cotillard, Judi Dench, Kate Hudson, Fergie e, para fechar a lista, nada menos que Sophia Loren.
E quase todos são “oscarizados” nesse grupo de atores. Daniel Day-Lewis, que faz o papel principal, ganhou duas vezes: por “Meu pé esquerdo” (1989) e “Sangue Negro” (2007).
A trama baseia-se no filme “Oito e Meio” do mítico Federico Fellini. Nele, Marcello Mastroianni fazia Guido Anselmi, um cineasta famoso que passava por um bloqueio no processo de criação ou pensava que vivia isso. Angustiado e cheio de dúvidas, ele tenta fazer o filme e em suas sucessivas tentativas acaba por realizar uma obra prima. Há um mergulho do cineasta em si mesmo num clima de sonho, pesadelo e delírios nos quais figuram as mulheres que o impressionaram em sua vida.
“Nine” conta a mesma história mas claro que Rob Marshall sabe que ele não é Fellini. E ainda bem. Porque seria desastroso fazer um “pastiche”, uma imitação barata.
Rob Marshall traz para “Nine” aquilo que ele sabe fazer muito bem: a sabedoria de suas tomadas de cena e cortes perfeitos.
Pois bem, nesse novo filme põe para dançar e cantar todo o elenco. Uns se saem bem, outros nem tanto. Mas o resultado final encanta a quem curte belas coreografias em lindos figurinos.
As sete mulheres de Guido, agora Contini, têm direito a números musicais diferentes, cada qual combinando com o caráter da personagem.
E são plumas e paetês em mulheres semi-nuas e escadarias no número de “vaudeville” ambientado num “Folies Bergères” de sonho para Judi Dench, que faz Lilly, a figurinista e confidente do diretor. De todas ela é a mais masculina:
“- Dirigir um filme não é nenhuma façanha. É saber dizer sim e não”, diz para o angustiado diretor.
Já para Penélope Cruz, Rob Marshall aproxima a câmara e capta toda a sensualidade da atriz. Arfante, só pernas e seios, ela dança com cordas. É Carla, a amante de Guido. Indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante, Penélope Cruz mostra que não é só Woody Allen que sabe dirigi-la bem.
Saraghina, que representa o encontro do menino Guido com a sexualidade, é vivida por Fergie, a vocalista do Black Eyed Peas. É a única cantora profissional do elenco e convence com a canção “Be Italian”. Da praia de Pesaro em 1920 em preto e branco, a cena passa para um cabaré com belas mulheres de preto e vermelho e botas, na coreografia mais envolvente do filme.
Marion Cotillard, para mim, é a que melhor encarna o espírito de “Oito e Meio”, fazendo Luiza, a mulher do cineasta. Canta lindamente “My husband makes movies” e surpreende com a coreografia de striptease na canção “Be on your own”.
A jornalista de Vogue vem na pele de Kate Hudson que canta o vibrante número “Cinema Italiano”, com alusões à moda dos anos 60, shorts dourados e franjas. Muito cintilante.
Para Sophia Loren, a “mamma”, tudo é diferente. Clima luminoso e aconchegante.Velas, branco e preto e adoração.
“- Você será eternamente meu, figliolo mio”, sussurra a Loren.
Nicole Kidman, a musa, é Cláudia a estrela do filme. É dela o dueto com Guido “In a very unusual way”. Vestido longo cor de carne, muito branca, ela é linda e fria como uma aparição.
Resta falar de Daniel Day-Lewis, a nova encarnação de Guido Contini. E ele o faz de uma maneira pessoal e forte no espírito do musical da Broadway, não do filme de Fellini.
Como ninguém, esse ator privilegiado embarca na viagem interior que faz a sua personagem à procura de inspiração. Reencontra-se consigo mesmo e compreende que o menino Guido sempre será o centro de sua criatividade.
“- Tenho quase 50 anos e 10 na cabeça”, reclamava antes de perceber que isso era o seu dom.
E o final é a tradução das palavras que o cineasta diz no começo do filme quando se esquiva das perguntas sobre como será seu filme “Itália”:
” – Você mata o filme falando dele. O filme é um sonho… Mas às vezes ocorre um milagre. Se você tem sorte, o sonho volta à vida novamente na sala de edição.”
“Nine” é esse milagre: um sonho de Rob Marshall tornado realidade. Acho que Fellini aprovaria.