Coco, antes de Chanel

"Coco, antes de Chanel", França

Direção: Anne Fontaine

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Mademoiselle, como todos sempre a chamaram, se viraria no túmulo se visse o que Anne Fontaine fez com ela…Logo ela que escondia o seu passado atrás das histórias inventadas que contava. Para ela essas histórias eram muito mais interessantes do que a verdade.

Mas o que é a verdade na vida de alguém? Quanto mais alguém que foi Gabrielle “Coco” Chanel?

Acho que o fantasma de Chanel se vinga nesse filme porque nunca se viu uma Coco tão sem graça e apagada como a de Audrey Tautou.

Em um ritmo lento, a “verdadeira” história de Chanel é contada em meio a cenários suntuosos e natureza esplêndida. Um filme bem cuidado.

Mas não creio que o sabor insípido desse filme seja fruto do trabalho da diretora ou da atriz. Muito mais provável é que a grife Chanel não possa se permitir nada que tire o brilho tradicional e burguês de suas carésimas criações.

Hoje em dia uma marca global, os famosos “C” entrelaçados vendem no mundo todo. Daí talvez essa orfãzinha um pouco petulante e perdida de amor…

Mas ficamos sem a mulher voluntariosa, livre de preconceitos, talentosa e dura que obrigava todos a se render a seu charme de Medusa.

Onde  está o “ballet russe”, Stravinsky, Hollywood e Gloria Swanson, o principe Dimitri, o duque de Westminster? Onde Misia, Marlene Dietrich e tantas outras?

Em um documentário feito no início do século XXI, quando Karl Lagerfeld assume a “Maison”, perguntam a ele:

“ – Qual foi a maior invenção de Chanel?”

“- Ela mesma”, responde o excêntrico estilista.

Ecoando as palavras de Mademoiselle, adepta do mistério (“É mais excitante imaginar o corpo de uma mulher do que mostrá-lo”), Lagerfeld aponta para a lenda que a própria Chanel escolheu para si mesma. E não foi pouca coisa conseguir torná-la realidade.

A cena mais tocante do filme é, na minha opinião, a sequência que mostra a mítica escada espelhada da Rue Cambon. Mademoiselle com suas pérolas e  tweeds, dando toques finais ao desfile imaginário de uma amostra dos modelos que ela criou ao longo de tantos anos, sorri vitoriosa. Mas sua imagem duplicada nos espelhos sugere o jogo narcísico de brilhos nos quais, entre cigarros e melancolia, ela escolheu viver.

Aos 87 anos morreu em Paris em 1971, rodeada das pessoas que a admiravam tanto quanto a temiam.

O mito que ela criou ainda sustenta a “maison”: não há mulher no mundo que não se encante com algo Chanel.

Ela foi uma feiticeira que amava as mulheres.

E o cinema ainda vai falar dela como ela merece.

Bastardos inglórios

"Bastardos inglórios" - "Inglorious Bastards"

Direção: Quentin Tarantino

Desde as primeiras cenas desse filme a gente fica cismada tentando se lembrar onde ouviu aquela música…Tarantino brinca com a nossa memória e vai criar, como sempre, emoção e prazer no espectador.

Longe dele a intenção de narrar fatos históricos e falar do passado. Se o filme tem como cenário a Segunda Guerra e a França invadida pelos nazistas, isso é mero pretexto. Porque o que ele quer mesmo é falar do próprio cinema.

Senão, vejamos.

Se você já se lembrou que a música que abre “Bastardos” é o tema do filme “The Alamo” de 1960, dirigido e estrelado pelo homem mau do cinema americano, John Wayne, você já tem uma pista sobre o que vai ver.

“Once upon a time…” (Era uma vez…) lê-se na tela quando começa o filme.

E, juntando uma coisa com a outra, acompanhamos Tarantino que vai ser politicamente incorreto mais uma vez, contando uma fábula sobre os “bad guys”, os sem caráter, ao jeito dos filmes de faroeste.

As personagens principais são um vilão farsesco, poliglota, insinuante e ao mesmo tempo ridículo (Christofer Waltz, que ganhou o prêmio de melhor ator em Cannes por esse papel) e um mocinho tosco, com sotaque caipira, Aldo, o Apache, jovem bonito e perverso, interpretado magníficamente por Brad Pitt.

O duelo vai colocar frente a frente os “bastardos” e os nazistas. Assim chamados pelos rivais,os “bastardos” são um pelotão de soldados judeus que mata e esfola, ou melhor, escalpela seus inimigos.

Os que sobrevivem tem a suástica marcada à faca na testa.A intenção desse bando é acabar com a guerra, explodindo o alto comando nazista em um cinema.

Se você é detalhista compreendeu a grafia de “bastards” com “e” no título original do filme para imitar um sotaque germânico. Coisas de Tarantino.

Paralelo a esse tema é contada a história de Shoshana (Melanie Laurent), judia francesa que perdeu toda a família assassinada pelo vilão nazista.

Um diálogo racionalmente ameaçador entre o vilão,”Caçador de judeus”e o camponês que abriga a família de Shoshana mostra o talento magnífico de Tarantino com as palavras.

A escolha do tema “vingança”, recorrente no cinema, literatura e teatro é uma das grandes motivações dos heróis de todos os tempos.

“ – A vingança move mais que o amor”, disse Tarantino em uma entrevista sobre o filme.

Assim, depois de muito sangue, em “Bastardos inglórios”a verdadeira vingança será levada a cabo pelos desprezados e humilhados: a judia e o negro. E será pelas chamas do fogo. O inferno comendo as suásticas vermelhas e os drapejados negros.

Não é à toa que Tarantino usa o cinema como fonte de inspiração de seu filme. Ele sabe fazer isso muito bem.

Em “Bastardos inglórios”ele brinca com os mitos que o próprio cinema criou, seja nos filmes de faroeste (bandidos bem intencionados), seja nos desenhos de Disney (Cinderela e o sapato perdido pela agente dupla) ou ainda em Chaplin (um Hitler de fancaria).

Tarantino crê no poder de fascinação do cinema e nós, espectadores, lucramos cada vez que ele nos concede um filme a mais.